Por que não devo chamar a Mata Atlântica de bioma?

*Por Marina Melo Duarte

     Você já deve ter lido em placas de museus, na internet ou até mesmo em leis a expressão “biomas do Brasil” referindo-se a Mata Atlântica, Cerrado, Amazônia, Caatinga, Pantanal e Pampa. Até mesmo o IBGE utiliza essa denominação. Mas será que bioma seria mesmo o termo adequado a ser empregado nessa situação? A resposta, para a surpresa de muitos, é que não.

Marco Batalha explica isso muito bem em seu artigo “O cerrado não é um bioma”, cuja leitura recomendo bastante. Biomas são conjuntos de comunidades biológicas que evoluíram sob fatores (principalmente climáticos) muito parecidos e seus organismos apresentam adaptações que os permitem sobreviver ali. Como consequência disso, o conjunto composto pela vegetação e por toda a fauna e micro-organismos associados a ela, dentro de um mesmo bioma, apresenta a mesma “carinha”, tem uma aparência geral muito semelhante (o que cientificamente chamamos de “fisionomia”). Por exemplo, os organismos de desertos, não importa em que parte do mundo, só conseguem sobreviver ali se apresentarem adaptações que os permitam resistir à seca e às flutuações bruscas de temperatura. Por contarem com essas adaptações tão semelhantes, as comunidades dos desertos acabam tendo também fisionomia bem parecida entre si.  

Os organismos do cerrado típico brasileiro e da savana típica africana também evoluíram sob condições bem parecidas, formando comunidades visualmente muito semelhantes, de campos salpicados por árvores esparsas. Com certeza suas espécies são completamente diferentes, mas isso não é o suficiente para enquadrá-los em diferentes biomas. Isso porque o conceito de bioma, mesmo que venha evoluindo e sofrendo modificações ao longo dos anos, permanece não sendo taxonômico (não leva em conta as espécies ali presentes), e sim fisionômico e funcional (leva em conta a aparência das comunidades e os atributos que indivíduos apresentam, relacionados a diferentes estratégias de vida, consequência de processos evolutivos). Com a Mata Atlântica é a mesma coisa. Você sabia que tanto a porção da Mata Atlântica do litoral do Brasil quanto a Floresta Amazônica fazem parte do mesmo bioma, o das florestas pluviais tropicais? Sua fisionomia não as permite distinguir em diferentes biomas, mesmo que tenham espécies tão diferentes.

 

Um exemplo: tanto na Amazônia (a) quanto na Mata Atlântica (b), você pode encontrar vegetação pertencente ao bioma floresta pluvial tropical. Por outro lado, dentro da Mata Atlântica, você pode encontrar vegetação pertencente tanto ao bioma floresta pluvial tropical (b) quanto ao bioma floresta sazonal tropical (c). Ficaria bem confuso chamar Amazônia e Mata Atlântica de biomas, não ficaria? 

É esse o significado de bioma que você encontrará se procurar em artigos internacionais. Foi um termo criado para ser aplicado em escala mundial, e não para definir particularidades dentro de um país. E, como a ciência deve transmitir uma mensagem objetiva, sem abertura para múltiplas interpretações, é fundamental que os diferentes países falem uma mesma língua e encontrem consenso em sua terminologia.

Você também já deve ter ouvido dizer que a Mata Atlântica e o Cerrado são hotspots para a conservação – outro conceito que, por sinal, também é muito comumente confundido. Isso significa que são regiões que apresentam grande número de espécies endêmicas (ou seja, que só ocorrem naquele local) e estão ameaçadas (tiveram intensa degradação). Ora, se para a definição de hotspot é importante considerar a existência de espécies endêmicas, então não faz sentido algum de chamar os hotspots Mata Atlântica e Cerrado de biomas, já que a definição de bioma é indiferente às espécies ali presentes. Não é mesmo?

Mas se não devemos chamá-los de biomas, de que devemos chamá-los então? Um conceito que cabe bem aqui é o de “domínio morfoclimático e fitogeográfico”. Ab’Sáber o introduz associando-o à ideia de herança: regiões que compartilham um histórico de formação, com semelhanças de clima, relevo, solo, hidrologia, espécies, ecologia. Outro termo igualmente adequado seria “ecorregião”, que é um amplo conjunto de ecossistemas, dentro de determinadas condições de clima, topografia, hidrologia etc.. Assim, podemos falar tanto em domínios quanto em ecorregiões Mata Atlântica, Cerrado, Amazônia, Caatinga, Pantanal e Pampa.

Por um lado, o uso não ortodoxo do termo bioma já foi bastante disseminado em todo o país e pode ser visto por toda parte. Por outro lado, Batalha defende que é obrigação da academia utilizar seus termos corretamente. Concordo plenamente com ele e venho tentando disseminar esse termo acuradamente sempre que possível, mas acredito que ainda vá demorar muito para conseguirmos mudar um conceito que está tão fortemente enraizado na cultura. Até lá, é compreensível que muita confusão seja feita com o termo e que ele seja usado por muitos de uma forma, vamos dizer, não academicamente correta. Achei muito elegante como o professor Carlos Joly se expressou em uma palestra, para explicar a questão: ele separou o uso científico (definição explicada neste texto) do uso legal, mais amplamente utilizado (definição do IBGE), da palavra bioma. Seja qual for a forma como você escolheu se expressar, só peço que por favor compreenda o embasamento disso e o que essa expressão realmente significa.


Agradeço à Natália Ivanauskas, pesquisadora do Instituto Florestal associada ao NewFor, pela revisão deste texto, pelas sugestões e por todas as explicações que ela já me deu sobre esse assunto.


Sugestão de leitura:


Batalha, M. A. 2011. O cerrado não é um bioma. Biota Neotropica, 11:1-4 (sobre o conceito de bioma)

Keith D. A. et al. 2020. The IUCN Global Ecosystem Typology v1.01: Descriptive profiles for Biomes and Ecosystem Functional Groups. Acesso em 06/08/2020, disponível em https://iucnrle.org/static/media/uploads/references/research-development/keith_etal_iucnglobalecosystemtypology_v1.01.pdf (Recente proposta da IUCN de classificação de ecossistemas)

Martins, F. R. Batalha, M. A. 2001. Formas de vida, espectro biológico de Raunkiaer e fisionomia da vegetação. Acesso em 05/08/2020, disponível em https://www2.ib.unicamp.br/profs/fsantos/bt682/2003/Apostila-FormasVida-2003.pdf (sobre fisionomia)

Mucina L. 2019. Biome: evolution of a crucial ecological and biogeographical concept. New Phytologist 222: 97–114 (sobre o conceito de bioma, revisão muito completa!)


*Bio: Marina Melo Duarte é bióloga pela Universidade Estadual de Campinas, mestre e doutora em Recursos Florestais pela ESALQ/USP. Hoje é professora do Departamento de Ciências Biológicas da ESALQ/USP e pesquisadora associada ao NewFor.


**O texto acima é um artigo de opinião, e não representa a opinião de todos os membros do NewFor ou de seus órgãos financiadores.

Comentários

  1. Olá,
    Realmente, o termo "Bioma" carrega muitas confusões quando pensamos nas divisões, tradicionalmente, usadas e ensinadas da vegetação brasileira. Para enriquecer a discussão, eu gostaria de sugerir o trabalho desenvolvido por Olson et al., (2001) [https://doi.org/10.1641/0006-3568(2001)051[0933:TEOTWA]2.0.CO;2]. Eles elaboraram mapas e dividiram as regiões terrestres em 8 domínios biogeográficos, 14 biomas e 867 ecorregiões (45 no Brasil). A Mata Atlântica não pode ser considerada uma ecorregião, pois contém diversas ecorregiões em sua área (Por exemplo: Florestas de Araucária). O conceito de domínio morfoclimático e fitogeográfico corresponde bem com os populares "biomas brasileiros", mas ainda não combinam completamente (Por exemplo, as áreas de transição e, novamente, o domínio das Araucárias). Sob o ponto de vista acadêmico, princialmente para o desenvolvimento de estratégias de conservação e restauração, sou adepto as divisões por ecorregiões. No entanto, procuro não perder de vista o uso tradicional, e até mesmo histórico, das divisões dos "biomas brasileiros" quando preciso dialogar com pessoas não ligadas diretamente com a academia.
    Muito obrigado pelo texto e recomendações de literatura.

    Abraços,

    Victor Santos
    Doutor em Ciências de Florestas Tropicais pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Este comentário foi removido pelo autor.

      Excluir
    2. Legal, Victor, muito obrigada por trazer essa discussão e recomendação de artigo. Realmente, as formas como os biomas e ecorregiões estão divididos dependem muito da classificação que você está usando. Mesmo porque não é possível verdadeiramente delimitar uma comunidade, não é? As espécies não possuem cerca, rs.
      Eu mesma não costumo usar o termo ecorregião, prefiro domínio mesmo. Mas algumas pessoas na fitogeografia usam e acredito que, pela definição do termo, seja mais apropriado do que bioma para a questão, pois leva em conta distribuição de espécies e não apenas fisionomia e atributos funcionais.
      Abraço!

      Excluir
  2. Texto extremamente necessário e bem escrito, linguagem muito acessível!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A importância da conservação e restauração de nascentes

Uma nova visão da floresta: o que a tecnologia vê que nós não somos capazes