Onde queremos chegar com a restauração?
A palavra restauração foi utilizada em diversos contextos antes da ecologia, e é definida como “uma ação de fazer com que algo volte ao seu estado anterior”. Enquanto ‘voltar a um estado anterior’ é de certa forma possível em monumentos e obras históricas, a aplicação da restauração para ecossistemas é muito mais complexa, já que estes estão em constante mudança. Nos seus primórdios, a restauração ecológica tinha como objetivo replicar ecossistemas do passado, trazer de volta todas as mesmas espécies e formas de vida que haviam ali anteriormente. No entanto surgiram questões conceituais e práticas sobre este objetivo conforme a restauração amadureceu como ciência, especialmente pela dificuldade em recuperar a complexidade de estrutura, composição e interação das florestas tropicais.
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Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira é exemplar de floresta madura na Mata Atlântica (Arquivo pessoal) |
Por exemplo, o ambiente onde a restauração florestal é realizada não é o mesmo ambiente em que a floresta original se desenvolveu no passado. O ambiente aberto das áreas em restauração gera um regime de luz, temperatura e umidade muito diferente de uma floresta conservada, favorecendo espécies mais iniciais da sucessão, ao invés das espécies mais tardias das florestas maduras. Após anos sem cobertura florestal, o solo provavelmente também não será mais o mesmo. Muitas florestas em restauração estão cercadas por atividades agrícolas ou ocupações humanas, que podem gerar distúrbios que eram desconhecidos para a floresta do passado, como entrada de gado, fogo e deriva de herbicidas. Por fim, a restauração ecológica tende a ser feita em áreas sujeitas a efeito de borda (e.g. áreas ripárias) e em áreas pequenas, sem gerar habitat suficiente para sustentar populações viáveis de algumas espécies mais exigentes*. Mesmo que soubéssemos introduzir todas as espécies e hábitos de crescimento (lianas, epífitas, ervas) que compõem uma floresta madura, muitas delas não sobreviveriam a longo prazo nesta nova floresta. Conforme as atividades humanas seguem mudando o regime climático global, podemos dizer que nenhum ecossistema do planeta está no mesmo ambiente que estava no passado.
Hoje também entendemos que os ecossistemas podem seguir diferentes trajetórias conforme se desenvolvem, dessa forma não faz sentido reproduzir uma trajetória para uma composição específica. Nesse contexto, o valor da referência histórica para a restauração ecológica mudou, mas não diminuiu. Com maior foco na recuperação dos processos ecológicos (e.g. recuperação da estrutura do ecossistema, proteção do solo, proteção e regulação dos recursos hídricos, provisão de habitat, riqueza de espécies), não foi abandonado o valor de conservação do ecossistema em restauração, apesar de espécies exóticas poderem ser usadas em diferentes abordagens de restauração, estas não devem prejudicar os demais processos ecológicos e a riqueza de espécies nativas deve ser guiada pela referência. Dada esta complexidade de contextos, abordagens de restauração e trajetórias sucessionais, a restauração olha para o ecossistema do passado como um guia, não mais como algo a ser replicado.
Os ecossistemas não são uma pintura que pode ser restaurada para se tornar uma cópia do que eram antes. São entidades dinâmicas muito mais antigas que a própria espécie humana e, desta forma, um ecossistema destruído nunca mais será o mesmo, não poderá ser reposto nem pelas melhores iniciativas de compensação. Reconhecendo isso, a restauração ecológica pode ser vista como colocar um trem de volta nos seus trilhos, e dar a energia necessária para que ele siga a jornada. Nós não sabemos onde este trem dos ecossistemas irá no futuro, ele pode seguir diferentes trilhos e passar por diferentes cidades, mas com certeza não irá para trás. Mas é importante que cuidemos do trem dos ecossistemas para que ele siga sua jornada, afinal, estamos todos a bordo.
Referências:
Garcia, L. C., Hobbs, R. J., Ribeiro, D. B., Tamashiro, J. Y., Santos, F. A. M., & Rodrigues, R. R. (2016). Restoration over time: is it possible to restore rees and non-tree in high-diversity forests? Applied Vegetation Science, 19, 655–666.
Higgs, E., Falk, D. A., Guerrini, A., Hall, M., Harris, J., Hobbs, R. J., … Throop, W. (2014). The changing role of history in restoration ecology. Frontiers in Ecology and the Environment, 12(9), 499–506. doi: 10.1890/110267
Latawiec, A. E., Crouzeilles, R., Brancalion, P. H. S., Rodrigues, R. R., Sansevero, J. B., Santos, J. S. D., … Strassburg, B. B. (2016). Natural regeneration and biodiversity: a global meta-analysis and implications for spatial planning. Biotropica, 48(6), 844–855. doi: 10.1111/btp.12386
Londe, V., Turini Farah, F., Ribeiro Rodrigues, R., & Roberto Martins, F. (2020). Reference and comparison values for ecological indicators in assessing restoration areas in the Atlantic Forest. Ecological Indicators, 110(May 2019), 105928. doi: 10.1016/j.ecolind.2019.105928
Suganuma, M. S., & Durigan, G. (2015). Indicators of restoration success in riparian tropical forests using multiple reference ecosystems. Restoration Ecology, 23(3), 238–251. doi: 10.1111/rec.12168/suppinfo
**O texto acima é um artigo de opinião, e não representa a opinião de todos os membros do NewFor ou de seus órgãos financiadores.
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