Como espécies do cerrado podem nos ajudar em sistemas produtivos mais sustentáveis neste bioma

 *Por Patricia de Britto Costa


O Cerrado é a savana mais biodiversa no mundo. Localizado na região central brasileira, e ocupando 22% do território nacional, conta com mais de 12.000 espécies de plantas. Aproximadamente 4.800 dessas espécies são endêmicas, ou seja, ocorrem apenas no Cerrado. Além de excepcionalmente biodiverso, ele fornece inúmeros serviços ecossistêmicos essenciais, incluindo aqueles ligados à manutenção de sistemas agrícolas. O Cerrado, por exemplo, é um importante provedor de água, contribuindo com 43% de toda água doce, desconsiderando a Amazônia, que se utiliza no Brasil. Além disso, é um grande sumidouro de carbono. Ou seja, ele retira o gás carbônico do ar mantendo-o estocado em seu subsolo, na forma de matéria orgânica e nas raízes profundas da vegetação, reduzindo assim o efeito estufa.

Contudo, desde 1970 tem ocorrido uma massiva e descuidada expansão agrícola e pecuária no Cerrado. Observamos uma crescente destruição de áreas nativas para o uso do território para pastagem e produção de commodities como soja, cana de açúcar e milho em monocultura. Essas atividades são responsáveis por cerca de 70% da destruição das áreas de vegetação nativa do Cerrado. E isso vem ocorrendo sob o argumento de que o impacto do desmatamento no Cerrado no ciclo do carbono é menor do que em biomas florestais, como a Amazônia. Esse argumento, que busca justificar a intensificação da agricultura e pecuária extensiva no Cerrado, desconsidera, contudo, o inestimável valor da biodiversidade do cerrado dentro de um contexto ecossistêmico mais amplo. A flora do Cerrado apresenta uma diversidade de genes e de “inovações biológicas”, que podem ser entendidos como estruturas e mecanismos fisiológicos específicos que possibilitam a sobrevivência das plantas diante de condições limitantes de água e nutrientes. 


Paisagem típica da fisionomia campo sujo na Chapada dos Veadeiros, Goiás.
Autor: Rafael Silva Oliveira. 


Por exemplo, uma das características da vegetação do Cerrado está relacionada a sua ocorrência em solos que apresentam severas limitações nutricionais e longos períodos de seca. Devido à erosão e lixiviação por milhões de anos, os solos do Cerrado são ácidos e com poucos nutrientes. Contudo, as espécies nativas são mais adaptadas para lidar com essas limitações que por meio de estratégias funcionais conseguem, mesmo em uma potencial adversidade, fazer aquisição e uso eficiente dos nutrientes necessários a seu desenvolvimento. Estudos prévios mostram que uma quantidade expressiva de espécies nativas do Cerrado também apresenta eficientes estratégias para aquisição de fósforo em solos que possuem, como o do Cerrado, baixa disponibilidade desse mineral. 

As espécies nativas apresentam mecanismos que conferem tanto um uso mais eficiente da água como uma menor perda dela em processos como o da fotossíntese. Um dos exemplos mais extremo desse tipo de mecanismo, como apontam os pesquisadores, é o que ocorre com as espécies da família Velloziaceae, que são plantas que suportam a dessecação completa de seus tecidos e que, com o retorno da disponibilidade de água no solo, ressurgem com o mesmo tecido vegetal. O entendimento do funcionamento desses tipos de mecanismos ligados à disponibilidade de água contribui para desenvolvermos sistemas produtivos mais sustentáveis.


 Paisagem típica do cerrado sensu stricto, em Delfinópolis, Minas Gerais.
Autor: Rafael Silva Oliveira. 

Compreender quais estratégias são essas, como elas funcionam e como contribuem para a interação planta-solo, abre um novo horizonte de possibilidades para um cultivo mais sustentável de alimentos na região. Com o devido manejo e avaliação das capacidades adaptativas, atributos já existentes no cerrado poderiam ser incorporados a plantas convencionalmente utilizadas na agricultura, causando menor impacto no funcionamento dos ecossistemas, devido o aumento da eficiência do uso e aquisição de água e nutrientes .

O cerrado, como evidenciado, é um hotspot de biodiversidade e um reservatório de recursos genéticos extremamente relevante para uma agricultura menos destrutiva. Como exemplo, espécies selvagens do Cerrado, com sua maior variabilidade genética (ainda bastante desconhecida), podem ser fontes de conhecimento essenciais para uma possível sustentabilidade do cultivo de amendoim no futuro. O estudo genético dessas variedades selvagens do amendoim e sua incorporação em bancos de dados, conhecidos como germoplasma, é de extrema importância. No futuro próximo, essas informações podem fornecer conhecimento inestimável para a manutenção do cultivo do amendoim sob cenários climáticos muito diferentes do atual.


Discocactus placentiformis com suas raízes, que liberam carboxilatos que mobilizam fósforo no solo pobre em nutrientes, Minas gerais. Autor: Rafael Silva Oliveira. 


Casos semelhantes a este podem ser citados em relação à mandioca (Manihot), às castanhas, como a Anacardium othonianum, que atualmente é usada como importante fonte alimentar em escala local e que possui aspectos nutritivos semelhantes aos das sementes oleosas tradicionais. O mesmo caso acontece com a castanha de baru (Dipteryx alata) e com o pequi (Caryocar brasiliense). O abacaxi (Ananas comosus) também é um exemplo, que apresenta um tipo selvagem que ocorre no cerrado, em solos pobres e secos, suportando longos períodos sem água. Estes são apenas alguns exemplos de como podemos, através da pesquisa e da preservação de ecossistemas nativos do Cerrado, desenvolver “novos” cultivos mais sustentáveis.

Para que isso seja possível, é fundamental que haja uma política eficaz de preservação dos remanescentes e das áreas preservadas do Cerrado. Embora existam técnicas de restauração, elas ainda estão longe de recuperar todas os atributos e diversidade encontrada no bioma nativo. Muitas das culturas agrícolas, especialmente as tropicais, tem sua origem em biomas nativos da América do Sul. São, portanto, ecossistemas essenciais, tanto em termos científicos, como culturais e antropológicos. Dependemos deles como fonte de soluções para enfrentar desafios que estão por vir na produção de alimentos nas próximas décadas. Conservar o Cerrado não se trata apenas de conservar uma das paisagens naturais mais extraordinárias do mundo (o que, muito embora, seja valioso por si só), trata-se de conservar nossas possibilidades de um futuro igualmente produtivo e diverso.


Este texto é uma colaboração com o Laboratório de Ecologia Funcional da Unicamp, com base no artigo: Lambers, H., de Britto Costa, P., Oliveira, R.S. et al. Towards more sustainable cropping systems: lessons from native Cerrado species. Theor. Exp. Plant Physiol. (2020). https://doi.org/10.1007/s40626-020-00180-z.


*Bio: Patricia de Britto Costa é bióloga, mestre e doutoranda em biologia vegetal pela Unicamp. Ao longo de sua formação trabalhou estudando estratégias de uso e aquisição de nutrientes em espécies nativas de solos pobres em nutrientes, principalmente nas fisionomias de Cerrado. Atualmente, tem trabalhado no mesmo tópico, mas com enfoque nas mudanças do uso do solo e na restauração ecológica desta vegetação. Contato: patricia.britto.costa@gmail.com



Comentários

  1. Muito interessante, obrigada por compartilhar essas informações com o NewFor! São muito boas essas oportunidades de expandir nossos horizontes para além da Mata Atlântica.

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