A restauração de mundos escondida no infinito de uma semente

Foto: Alex Mendes

 

Por Nurit Bensusan


A restauração ecológica parece uma tarefa técnica, replantar um conjunto de árvores que existia antes e não existe mais. Descobrir as melhores formas de fazer isso, reduzir custos, poupar tempo, enfim, tudo que uma atividade técnica requer...

A verdade, porém, é que a restauração não é isso. Possui, obviamente, um componente técnico, mas se trata de outra coisa:  a restauração ecológica trata da recriação de mundos. Vale enfatizar que uma floresta não é o coletivo de árvores, um ecossistema não é um coletivo de plantas e animais, e sim de relações. É evidente que as plantas e os animais fazem parte dos ecossistemas, mas o que faz um ecossistema ser um ecossistema são as interações entre todos os seres que ali habitam. Assim, a restauração deve ser vista como a possibilidade de reconstruir lugares por inteiro, devolvendo a eles a alma e assim restabelecendo o espaço para as relações, para os encontros, para as possibilidades e consequentemente, com eles, para as borboletas, os besouros, os cogumelos, os pássaros, os roedores e mais uma infinidade de seres – para que a vida aconteça por inteiro.

Em um mundo onde a destruição é a regra, refazer, recriar, restaurar é um imenso desafio. Vale a pena, nesse tempo em que vivemos, refletir sobre a dimensão simbólica de recompor ecossistemas, reinventando possibilidades extintas, oferecendo novos mundos aos que insistem em não vê-los. 

Nesse momento, quando constatamos que a pandemia nossa de cada dia não é uma casualidade ou um azar e sim o resultado de como lidamos com a natureza - e que não é possível continuar vivendo da mesma forma sem consequências nefastas – recompor, recriar, reinventar, restaurar se transforma numa atividade fundamental.  

Agora, quando fica cada vez mais claro que não há mais espaço para se apostar que as consequências de nossas relações com a natureza não vão desabar sobre nossas cabeças tragicamente, na forma de surtos de doenças mortais ou de eventos climáticos extremos, nem que aparecerá uma solução tecnológica miraculosa para tudo isso, é quando se torna essencial mostrar que mundos podem ser recompostos, que há caminhos outros que não a destruição e a degradação e que esses caminhos podem conduzir a novas formas de estar no mundo.

Para a maioria das pessoas, porém, é muito difícil imaginar outros jeitos de viver. Nosso imaginário está tão colonizado que só conseguimos acreditar que tem um jeito certo de estar no mundo, mas que, no entanto, parece ser completamente errado. Como poder estar certo se destrói outros mundos, acaba com a floresta, ignora a natureza, faz arder o Pantanal, altera o clima e cria condições para surtos de doenças mortais? Como podemos, apesar de tudo, continuar nessa seara?

Se olharmos para a restauração ecológica como forma de recriar mundos, temos que pensar nas diversas dimensões desses mundos e frequentemente elas incluem povos indígenas e comunidades locais. O enorme contingente de conhecimento que esses povos e comunidades possuem sobre as paisagens onde vivem pode se tornar a matéria-viva da restauração, fazendo com que a reinvenção de mundos inclua diversos saberes e olhares.

A restauração ecológica também pode ter uma dimensão de reparação para esses povos, uma espécie de compensação pela infinita destruição. Essa dimensão deve vir do encontro, onde cada um se move do seu ponto de origem em direção ao outro e, no ponto de encontro, novas possibilidades são criadas.

O encontro é essencial para que a restauração aconteça. Para que ela não se restrinja a um simples plantar de árvores, sem a dimensão ecológica, sem a dimensão da reconstrução de mundos. Não haverá paisagens restauradas se elas não levarem em conta a presença, a respiração, o arfar dos povos que ali viviam. A aritmética da restauração não pode sobrepujar jamais sua poesia.

Como diz o Ailton Krenak, “nosso tempo é especialista em produzir ausências”. O desmatamento é parte dessa máquina de produzir ausências. Os dados mostram que se trata de ausências cada vez maiores. As ameaças à integridade dos territórios de povos indígenas e comunidades locais, sua vulnerabilidade ampliada e, mais recentemente, as mortes por covid-19 também fazem parte desse processo de gerar vazios. Até mesmo esses desaparecimentos são objeto de uma disputa sobre o futuro, sobre esses espaços, sobre o que preencherá essas ausências.

Quem já experimentou as diversas dimensões da restauração ecológica sabe que recompor a complexidade dos ambientes é uma das dificuldades. Uma das ausências que nosso tempo tem produzido é a da complexidade e da diversidade. Ao transformar ambientes naturais em monoculturas agrícolas ou em pastos, se perde uma diversidade monumental e se desfaz a intrincada rede de processos que geram e mantêm a diversidade biológica.

A trágica perda de líderes e pessoas mais-velhas das comunidades locais e dos povos indígenas se reflete também na perda de conhecimento sobre as paisagens onde eles vivem. Sem esses conhecimentos, o mundo fica mais pobre, mas também as possibilidades da restauração diminuem bem como a capacidade de recriar a complexidade dos ambientes, que é espelhada no conhecimento desses povos.

A verdade é que a meta maior da restauração deveria ser se tornar desnecessária. Em um mundo onde não fosse preciso proteger a natureza de nós mesmos, onde não fosse necessário arrancar porções do território da sanha predatória da nossa espécie e fazer deles áreas protegidas, seria possível conciliar as atividades humanas com a manutenção de florestas e outros ecossistemas naturais. Em um mundo onde a necessidade de restauração fosse uma exceção e não a regra, as diversas formas de estar no mundo poderiam conviver.

Trata-se de entender onde é o centro do mundo, serão as cidades apinhadas, com humanidades se derramando por suas bordas, ocupando uma parcela insignificante da superfície do planeta, mas demandando grandes extensões para suprir suas necessidades doentias de consumo ou o centro do mundo está nas paisagens onde o bem viver é a regra, onde outras formas de estar no mundo se apresentam?

Trata-se, ainda, de saber o que é central, o que é importante, pois o presente é uma máquina de fazer futuros e que o que a gente faz agora que decidirá o que será o nosso futuro. A restauração ecológica é a melhor ilustração disso: as sementes e as mudas de hoje serão as florestas e os ecossistemas restaurados de amanhã. Numa semente reside todo o infinito, todos os segredos da vida, todas as possibilidades...

Mas também, como na restauração, tudo pode desandar e o futuro pode ser um engano. A década da restauração pode ajudar a moldar um futuro, mas não pode se resumir a tentar preencher ausências, precisa fazer parte do processo que desmonta a produção desses vazios. Deve restaurar ecossistemas por um lado, mas deve também ajudar na recomposição de uma narrativa de que o desmatamento e a destruição de ambientes são inadmissíveis.

Nesse momento, o que fazemos e como fazemos são decisivos para o futuro em que viveremos. Ou recriamos mundos, ainda que tal tarefa nos pareça impossível ou teremos que nos conformar com um lugar, cada vez mais estreito, mais cinza e mais sombrio.


**O texto acima é um artigo de opinião, e não representa a opinião de todos os membros do NewFor ou de seus órgãos financiadores.

Bio: Nurit Bensusan é bióloga e engenheira florestal, com mestrado em ecologia, doutorado em educação de ciências e pós doutorado em antropologia. É pesquisadora do Instituto Socioambiental, autora de mais de 15 livros sobre temas socioambientais para adultos e crianças


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