Mês da Ecologia - Entrevista Rafael Chaves

Rafael Chaves. Ecólogo formado na Unesp - Rio Claro em 2008, voltou à academia (IB-USP) para cursar o doutorado em 2018. Especialista ambiental da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (SIMA-SP) desde 2009, dirigiu o Centro de Restauração Ecológica entre 2010 e 2018. Chegou ao mundo da restauração há 15 anos, e atualmente é conselheiro do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica e presidente da Sociedade Brasileira de Restauração Ecológica (SOBRE). 



1. Como você chegou onde está hoje? O que te levou a fazer Ecologia? Qual sua trajetória? Qual sua área de atuação?

Um dos ambientes centrais em meu interesse pela ecologia foi a região das veredas do triângulo mineiro, terra do meu pai, e da minha avó raizeira e contadora de causos. As histórias de fazenda, com matas e onças, contrastavam com o ambiente urbano da São Paulo em que cresci. Morava no Butantã, um bairro ainda relativamente provinciano da capital, mas observava como a verticalização transformava rapidamente os arredores.

Estudar ecologia foi uma decisão guiada sobretudo por um senso de responsabilidade com o entorno, com a casa em sentido amplo. Por um lado, a curiosidade em buscar entender como funcionam os ecossistemas, por outro, a necessidade de agir para frear a degradação que o ser humano impõe ao próprio ambiente. Eu via a ecologia como o desafio fundamental do nosso tempo, e mergulhei nele.

Ao entrar na faculdade, um dos conselhos mais valiosos veio de um professor, que provocou: “o ecólogo não pode se contentar em ficar fechado na sala de aula, precisa conhecer de perto os ecossistemas que estuda”. Nos anos seguintes, fui disciplinado em jogar o mochilão nas costas ou o alforje no bagageiro da bicicleta, ao fim de cada ano, para percorrer as ecorregiões do Brasil e arredores, uma verdadeira escola ao ar livre ao lado de grandes amigos.

Mas eu não queria apenas aprender a céu aberto, algo que o curso da Unesp - Rio Claro valorizava por meio de várias disciplinas de campo: queríamos também aplicar o que aprendíamos. Em 2006, com outros alunos da Ecologia, fundamos o Grupo Gira-Sol, de extensão universitária, cujo objetivo inicial era restaurar, usando a agroecologia, a margem do córrego que passava dentro do campus mas que estava tomada por capim. Como a universidade podia falar tanto em conservação e ter o próprio quintal daquela forma? Resolver problemas na prática, como dialogar com o morador do bairro vizinho que soltava gado na área, conseguir sementes de adubação verde, pedir aprovação do órgão ambiental e selecionar as espécies arbóreas nativas, foi um aprendizado marcante que levei para a vida profissional.

Ingressar no serviço público em 2009, como especialista ambiental na Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (atual SIMA), me deu a chance de contribuir com a sociedade trabalhando para o bem comum, o que é difícil de visualizar, já que o meio ambiente é um direito difuso, mas quem se dedica incansavelmente a essa tarefa sabe a satisfação que traz. Os servidores, nos quais me incluo, são os elos que garantem a continuidade da proteção ambiental ao longo das diversas gestões.

Mas eu já tinha a noção, que ficou ainda mais clara ao longo desses 11 anos, de que era uma tarefa grande demais para assumir fechado nas paredes do órgão ambiental. As principais políticas públicas que desenvolvi, além de contarem com a colaboração de muitos colegas do Sistema Ambiental Paulista, foram construídas com ampla participação de atores dos diversos setores, entre academia, estado, ONGs e empresas. E os caminhos para essa colaboração, em grande parte, foram pavimentados graças aos movimentos pela restauração dos ecossistemas que se consolidaram ao longo da última década: a Sociedade Brasileira de Restauração Ecológica (SOBRE), que ajudei a fundar e na qual atuo hoje como presidente, e o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica (PACTO), do qual sou membro do conselho, e que em 2020 foi reconhecido como o capítulo regional da SOBRE para a Mata Atlântica.

Como você já pôde reparar, minha principal área de atuação é a Restauração Ecológica, que acredito ser um dos principais desafios da humanidade, e não estou sozinho nessa, já que a ONU definiu o período de 2021-2030 como a década da restauração dos ecossistemas.

 

Vereda em Uberlândia - 2008


2. Como a Ecologia ajudou na sua carreira? Na sua atuação hoje? O que mais te motivou/motiva em trabalhar nessa área?

A Ecologia me deu uma formação ampla, que ajuda a lidar com problemas complexos da sociedade, e o próprio concurso que prestei para ingressar na carreira de especialista ambiental, embora fosse aberto a uma variedade de formações de ensino superior, abordava um conteúdo muito semelhante ao currículo do ecólogo. Essa visão integrativa, que requer conhecimentos de múltiplas áreas, dos meio biótico e abiótico, passando pelas interfaces com ciências humanas, como economia e direito do meio ambiente, dá ao ecólogo uma formação para o diálogo. É claro que a universidade poderia fazer mais para preparar mediadores para a sociedade. Mas dentre as opções existentes, considero que minha formação me deixa à vontade para compartilhar uma mesa de trabalho com profissionais de todas as áreas, o que não só é importante como é frequente quando você vai formular políticas públicas abrangentes, como devem ser as da esfera ambiental.

No Brasil, temos uma constituição moderna no princípio de preservação do meio ambiente, mas que depende de mecanismos infra-legais para que esse princípio seja efetivo, para que se materialize na vida real, e não seja apenas a letra fria de um texto engavetado. Trabalhar na construção desses mecanismos, junto com pessoas que dedicam as vidas a isso, é algo que me motiva em minha atuação. Mas despertar o interesse das pessoas em geral que, mesmo sem necessariamente ter plena consciência disso, dependem completamente da existência de outros seres e ecossistemas para seguirem vivas e saudáveis, junto com filhos e netos, também é fundamental para que as políticas ambientais sejam internalizadas, desejadas e defendidas pela sociedade.

Outro aspecto que me motiva é poder construir pontes entre a ciência, a prática e as políticas públicas. Na verdade, nem deveria fazer sentido falar em pontes pois essas esferas deveriam ser um só continente, mas infelizmente pode haver um oceano entre elas. Uma forma que encontrei de ser um agente para o diálogo foi buscar habitar esses continentes de modo que nenhum deles se torne estranho ou distante: conhecer as experiências na prática; escutar os detentores de saberes diversos; desenvolver o conhecimento na área; implementar políticas públicas; em um ciclo que se retroalimenta para gerar bons frutos especialmente no longo prazo.

Foi esse caminho que me trouxe formalmente de volta à academia - na USP - onde desenvolvo atualmente o doutorado, com Leandro Tambosi. De volta à Ecologia.

Floresta restaurada em Iracemápolis - 2013


3. Qual o impacto do seu trabalho na sociedade e no meio ambiente?

Uma das responsabilidades em fazer política pública é justamente que elas impactam muita gente. Em um estado com 45 milhões de habitantes, em um país em que a agenda ambiental se dá sobretudo na esfera estadual, nem se fale.

Na SIMA, meu primeiro trabalho que ganhou abrangência foi a implementação dos indicadores da restauração em 2014. Ter critérios claros para verificar o sucesso da restauração é essencial tanto para projetos voluntários, que querem investir bem os recursos, quanto para obrigações legais, quando é preciso comprovar que o benefício foi entregue à sociedade, mas não é fácil fazer isso de modo simples e objetivo. Por isso, a construção desses critérios (indicadores) levou 4 anos, contou com a colaboração de centenas de pessoas e organizações, e serviu posteriormente de base para ao menos 9 outros estados. Muita gente que dizia que monitorar era um custo a mais, hoje reconhece que pode economizar e ser mais eficiente ao identificar problemas com maior antecedência. Milhões de hectares precisarão ser restaurados no Brasil nos próximos anos e interessa a quem faz, a quem financia, a quem fiscaliza e a quem se beneficia atestar que as ações sejam efetivas, por meio dos indicadores.

Na sequência, estruturamos o Programa Nascentes, que teve grande impacto no governo em 2015 por ter envolvido 12 secretarias em torno da restauração. Ter vindo do Meio Ambiente, onde as ações eram pouco discutidas com outras pastas, e estar de repente em uma mesa discutindo com representantes da Casa Civil, Justiça e Educação foi uma experiência inusitada, que permitiu por exemplo formar professores da rede pública de todo o estado para abordar a restauração junto aos alunos, ou mesmo utilizar mudas produzidas por reeducandos do sistema prisional, o que era inimaginável antes do programa. Alguns fatores para que o Nascentes virasse realidade foram a necessidade de uma resposta do estado à crise hídrica de 2014 (vontade política) e uma secretária comprometida vinda da academia (Patrícia Iglecias), condições que podem se mostrar cruciais para viabilizar uma ação pública consistente.

Uma plataforma importante que lançamos foi o SARE, sistema que registra os projetos de restauração em São Paulo, de modo espacialmente explícito e com ferramentas de apoio e monitoramento associadas, servindo como instrumento de gestão inclusive para quem faz restauração de forma voluntária. Essas foram as bases para São Paulo assumir diversos compromissos internacionais de restauração ao longo da década de 2010: Aichi, Paris e Iniciativa 20x20, na qual atuei representando o estado.

Esses foram alguns dos resultados, mas é importante falar também nos processos envolvidos. Dirigi o Centro de Restauração Ecológica da SIMA por oito anos, mas as entregas nas quais trabalhamos e que mencionei acima se deram sobretudo na segunda metade, sendo que a primeira foi dedicada ao processo de construção participativa. Daí a importância dos trabalhos continuados, com visão de médio e longo prazo, especialmente quando há consulta aos atores envolvidos, o que pode até demandar mais tempo mas resulta em arranjos muito mais consistentes. Também foi fundamental ter uma sequência de 3 coordenadores dando retaguarda contínua ao trabalho - Helena Carrascosa, 'Kitty' Azevedo, e Danilo Amorim - e pessoas formidáveis na equipe - Rosi, Claudia, Antônio, Paty, Silas, Ana, Deia, Fernanda, Leila, Denise, Carol, Juliana, Aline, Michelle, Isabel - entre outros colegas super dedicados. Conta em São Paulo ter um histórico favorável para aproximar ciência e políticas ambientais, com papel marcante do Biota FAPESP por meio de professores como Joly, Ricardo Rodrigues e Jean Paul Metzger, além de pesquisadores com foco aplicado, como Giselda Durigan, Antônio Melo e Vera Lex.

Gosto de reforçar a relevância das políticas pois acho que é um elo crucial quando tratamos de um direito difuso como o Meio Ambiente. Por outro lado, a verdadeira transformação só ocorre quando a sociedade se apropria pra valer do assunto. Por isso, acredito muito na atuação que temos construído na SOBRE, por meio do crescente número de pessoas e instituições que se propõe a difundir a restauração pelo Brasil. E, junto com os coletivos que atuam regionalmente no território para restaurar hectares na prática, como o Pacto, na Mata Atlântica, o impacto positivo da restauração poderá enfim ser percebido de modo mais abrangente para a saúde e qualidade de vida das pessoas.

Diretoria e conselho da SOBRE em BH - 2018


4. Quais os principais desafios que você enfrenta atualmente?

Um dos desafios constantes é como trazer as demandas prioritárias para o bem comum da sociedade para dentro das decisões governamentais, já que na prática há um desequilíbrio de forças, que favorece o lobby dos setores políticos e econômicos mais influentes. Mas essa influência já está dada, e ocorre sem precisar de mediação. Por isso o estado deve, sobretudo, concentrar esforços em trazer para o debate os grupos que de outra forma não teriam acesso aos processos de tomada de decisão, como os movimentos inter setoriais, aplicando o imprescindível conhecimento científico e a variedade de saberes que costumam passar despercebidos pelos radares e lentes oficiais - como os provenientes dos agricultores familiares e dos povos e comunidades tradicionais. 

Há também o desafio da manutenção das boas políticas já implementadas, pois há o risco das forças do atraso agirem para as desmontar. Mas quando a construção se dá com ampla participação, a sociedade vai cobrar a sua continuidade. E mesmo que revoguem a política formal, os princípios que a sustentam seguirão vivos.

Há o desafio crucial de intensificar a comunicação com a sociedade, trazendo a importância da conservação e da restauração para a vida das pessoas, já que é o conjunto das decisões de cada um que pode reverter o cenário de degradação que ainda vivemos em pleno século 21. Cada organização deve fazer a sua parte. Assim como a turma liderada pelo Pedro Brancalion no NewFor têm dado uma contribuição importante.

E há o desafio diário de, ao levantar, seguir acreditando que um mundo melhor é possível, e perceber que é tempo de começar a trazê-lo para baixo dos nossos pés!

Obrigado a todos os ecólogos e parceiros que plantam essa ideia!


Lattes

ResearchGate


Conferência da FAO/ONU em Roma - 2018



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