Por Carolina Bozetti Rodrigues
“Quando eu era criança eu nadava, e até pescava, nesse rio. Mas agora isso já não é mais possível...”
Quem já não ouviu essa frase de uma pessoa mais velha? Frase dita com um tom de saudosismo e um tanto quanto de tristeza. De fato, alguns de nossos rios encontram-se adoecidos e outros já sem vida.
Mas, o que aconteceu com esses rios? A qualidade e a quantidade de água presente em um rio é o produto, ou melhor, a consequência, do que ocorre em sua bacia hidrográfica. Da mesma forma, a água presente nas nascentes e nos pequenos riachos é o resultado do que ocorre nas cabeceiras de drenagem (parte alta das bacias hidrográficas). Por essa razão, é possível afirmar que existe uma estreita relação entre o uso do solo e a qualidade e quantidade de água de nascentes, riachos e rios.
Paisagens recobertas por florestas nativas comumente apresentam água com excelente qualidade e regularidade ao longo das diferentes estações do ano. Esse fato se deve principalmente à participação das florestas no ciclo da água, também conhecido como ciclo hidrológico. Quando a chuva cai sobre as florestas, a água é interceptada pelas folhas presentes nas copas das árvores e pode chegar até o solo florestal por meio do escoamento pelos troncos ou pela precipitação interna. A maior parte dessa água consegue infiltrar devido à proteção dos solos proporcionada por uma camada de matéria orgânica formada por folhas e galhos mortos, denominada serapilheira, que se acumula sobre o piso florestal. Após infiltrar, a água pode seguir basicamente dois caminhos: deslocar-se lateralmente até os riachos, seguindo a declividade do terreno, por meio de um movimento chamado escoamento subsuperficial ou continuar a deslocar-se perpendicularmente, por meio de um processo chamado percolação, recarregando as camadas mais profundas do solo e o lençol freático. É a água armazenada no lençol freático que garante a vazão das nascentes e riachos nos períodos de estiagem.
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Figura 1. A quantidade e a qualidade da água presente em rios, riachos e nascentes são o reflexo do uso do solo nas cabeceiras de drenagem e na bacia hidrográfica como um todo. |
Assim, de forma simplificada, podemos afirmar que as florestas proporcionam condições ótimas para que a infiltração e a percolação da água ocorram, garantindo o armazenamento e a recarga, e gerando água com notável qualidade.
É claro que as florestas também se beneficiam de sua participação no ciclo hidrológico. As árvores, em especial, utilizam a água armazenada no solo, deslocando-a das raízes até as folhas, para a produção de seu próprio alimento. Durante esse processo, conhecido como fotossíntese, as árvores captam o carbono presente na atmosfera e liberam água em forma de vapor (transpiração). E assim, continuamente, as florestas participam do ciclo hidrológico.
Mas, e quando ocorre o desmatamento? O que acontece com os processos hidrológicos e o que isso tem a ver com rios adoecidos e sem vida? Em muitos locais do Brasil, a vegetação nativa foi removida há centenas de anos, principalmente para a exploração madeireira e a abertura de áreas para o cultivo agrícola. Sucessivos ciclos de diferentes culturas (cana-de-açúcar, café, pastagens etc.) se alternaram, adaptando-se às características locais e às tendências econômicas. Também durante esse período, pequenos povoados foram se transformando em cidades, como reflexo do aumento da população.
Todas essas mudanças afetaram os processos hidrológicos, principalmente àqueles relacionados à movimentação da água no solo. Durante dezenas e em muitos casos até centenas de anos, foram adotadas técnicas extremamente intensivas de preparo do solo, em longas extensões da paisagem, promovendo, por exemplo, a desestruturação dos solos, compactação e empobrecimento do teor de matéria orgânica. Todos esses fatores contribuíram ativamente para a diminuição da infiltração. Quando a água não consegue infiltrar, ela escoa superficialmente sobre o solo, gerando erosão e carregando sedimentos para os rios. Assim, quando a maior parte da água da precipitação deixa de se locomover pela paisagem por meio do escoamento subsuperficial e passa a alimentar predominantemente o escoamento superficial ocorre redução da recarga da água subterrânea, assoreamento de nascentes e riachos, e perda da qualidade da água.
As cidades, por sua vez, ainda que representem uma área pequena, concentram alta impermeabilização do solo e geram esgoto e lixo doméstico e industrial que, em boa parte do Brasil, ainda não são coletados, tratados e destinados de forma correta, acarretando poluição dos rios e do lençol freático.
Rios adoecidos e sem vida apresentam em comum históricos de uso e ocupação de suas bacias hidrográficas desfavoráveis à proteção dos solos e, consequentemente, à manutenção dos processos hidrológicos, o que lentamente, por dezenas e dezenas de anos, comprometeu a saúde das bacias hidrográficas. Existe “tratamento” para esses rios e suas bacias hidrográficas? Sim, felizmente existe! Mas esse “tratamento” demanda mudanças, requer a ação conjunta daqueles que atuam na bacia hidrográfica e pode demandar tempo.
Dentre algumas mudanças necessárias podemos destacar: a adoção de técnicas que promovam a infiltração da água nas áreas produtivas como, por exemplo, o plantio direto e o cultivo mínimo; a coleta e o tratamento correto do esgoto e do lixo urbano; e o retorno do componente florestal à paisagem, seja protegendo áreas sensíveis seja conservando exemplares da biodiversidade e, até mesmo, produzindo produtos madeireiros e não madeireiros.
É preciso lembrar que as águas não respeitam cercas, fluindo pela paisagem das áreas mais altas para as áreas mais baixas. Por essa razão, o estabelecimento de novas florestas nas bacias hidrográficas não pode ser considerada panaceia, ou seja, como uma solução única capaz sozinha de resolver todos os problemas atuais relacionados à perda da qualidade da água e o desequilíbrio entre sua oferta e demanda. No entanto, a inserção de novas florestas na paisagem possui alto potencial de restaurar as propriedades dos solos e, consequentemente, os processos hidrológicos a eles associados. Assim, à medida que essas novas florestas se desenvolvem e amadurecem, podem participar mais ativamente do ciclo hidrológico, principalmente dos processos hidrológicos relacionados com a conservação e manutenção da qualidade e da quantidade de água. Por essa razão, as novas florestas podem ser fundamentais no processo de recuperação da saúde das bacias hidrográficas e, consequentemente, do retorno à vida de nascentes, riachos e rios.
**O texto acima é um artigo de opinião, e não representa a opinião de todos os membros do NewFor ou de seus órgãos financiadores.
Autor: Carolina Bozetti Rodrigues
E-mail para contato: cabreuva@gmail.com
Bio: Carolina Bozetti Rodrigues é engenheira florestal, mestre e doutora em Recursos Florestais pela ESALQ/USP. Trabalha como consultora na área de hidrologia florestal, monitoramentos hidrológicos e manejo de bacias hidrográficas, com foco nas interações entre uso do solo e recursos hídricos.
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