Como o tratamento de esgoto e os estudos ecotoxicológicos podem contribuir para conservação dos recursos hídricos

 Por Laís R. D. Sommaggio

Algo que todos já ouvimos falar é que a água é um recurso natural essencial para a vida. Mas você já parou para pensar o porquê ela é tão importante e como utilizamos esse recurso?

A água é um componente bioquímico de todos os seres vivos, sendo indispensável para o desempenho das funções vitais dos organismos. Além disso, ela também é o meio de vida de várias espécies animais e vegetais, bem como, é essencial para diversas atividades socioeconômicas, dentre elas a agricultura e a pecuária.

A maior parte do planeta Terra é constituída de água, no entanto, apenas 3% equivale a água doce. Desse percentual, a maior parte está localizada em calotas polares, geleiras e icebergs, restando apenas 0,3% de água doce disponível. Em termos globais, o Brasil possui cerca de 12% da disponibilidade de água doce do planeta, mas a distribuição natural desse recurso não é equilibrada, a região Norte concentra cerca de 80% do total disponível e as regiões próximas ao Oceano Atlântico menos de 3% dos recursos hídricos do país.

Segundo o Relatório Mundial das Nações Unidas, sobre Desenvolvimento de Recursos Hídricos, a demanda por água aumenta exponencialmente, sendo esperado, até 2050, um aumento 55% na demanda por água, o que pode resultar em graves crises de abastecimento, não somente pela quantidade de água, mas também pela qualidade da água disponível para consumo.

Os recursos hídricos estão se tornando cada vez mais vulneráveis, devido à crescente demanda resultante do crescimento populacional, da necessidade do aumento na produção de alimentos, da expansão da industrialização, da contaminação dos recursos por inúmeras atividades antrópicas, da ausência de tratamento de esgoto e dos impactos promovidos pelas mudanças climáticas. Isso tudo tem comprometido a qualidade das águas, caracterizando um sério problema de ordem ambiental e de saúde pública.

Vamos parar um pouco para fazer uma reflexão. Quando você está tomando banho ou escovando os dentes, você utiliza alguns produtos de higiene pessoal. Pegue um creme dental ou um condicionador e olhe os ingredientes presentes nesses produtos que você utiliza diariamente. Quantos ingredientes podem ser encontrados em cada um dos produtos? Um creme dental pode ter cerca de 14 ingredientes e um condicionador de cabelos pode conter cerca de 19 ingredientes em sua composição. Você já parou para pensar para onde vai tudo isso?

Atualmente são conhecidas milhões de substâncias químicas sintéticas no mundo e novas substâncias podem estar sendo produzidas neste momento. Grande parte desses contaminantes atingem os sistemas aquáticos, juntamente com um número considerável de produtos que sofreram uma transformação ambiental. Nos últimos anos muitas substâncias orgânicas emergentes, como resíduos farmacêuticos, produtos de higiene pessoal, pesticidas e produtos químicos industriais foram detectadas e investigadas no ambiente aquático. Essa classe de poluentes emergentes normalmente é encontrada em baixas concentrações nas águas, no entanto, podem ser biologicamente ativas e promover impactos negativos para as populações em desenvolvimento, podendo colocar em risco várias espécies.

Os locais de alta densidade demográfica são os que mais apresentam agentes químicos que comprometem a qualidade dos recursos hídricos, como, por exemplo, os contaminantes presentes nas águas residuais, conhecidas popularmente como esgoto. As águas residuais (esgoto) são todas as águas descartadas após uso em atividades humanas, dessa forma, contém inúmeros contaminantes. Assim, para evitar que essas águas sejam liberadas in natura nos corpos hídricos e deteriorem o meio aquático, elas devem passar por processos e tratamentos, que são realizados em Estações de Tratamento de Esgoto (ETE).

As ETEs são responsáveis pela remoção de poluentes e microrganismos das águas residuais. No entanto, os tratamentos convencionais (físicos e biológicos) realizados pelas ETEs removem apenas parcialmente as substâncias orgânicas emergentes, sendo necessário a aplicação de novas tecnologias para melhorar a qualidade do efluente final gerado pela ETE. A melhora na qualidade do efluente gerado na ETE, além de minimizar o potencial poluidor desse efluente quando descartado em um corpo d’água, constitui uma importante alternativa para ele, de ser reaproveitado. E aí, entra uma outra questão importante, a reutilização desses efluentes de esgoto.

Muitos países usam e investem em tecnologias de tratamentos de águas residuais, para que essas possam ser reutilizadas para diversos fins. O reuso de efluentes se apresenta como uma importante ferramenta de uso racional de água, no âmbito da gestão de recursos hídricos. Essa prática, além de mitigar os impactos que os efluentes possam promover no meio ambiente, reduz a captação de água dos mananciais, permitindo maior disponibilidade hídrica para distintos usos. Dessa forma é essencial utilizar menos e tratar mais a água de forma que ela possa ser reutilizada. 

Mas como podemos assegurar a qualidade dessas águas? Como conseguimos inferir se aquele efluente gerado por uma ETE se encontra adequado para ser reutilizado? Como estabelecer limites seguros desses contaminantes presentes nos efluentes e nos recursos hídricos? Atualmente podemos encontrar legislações específicas que apresentam limites de substâncias que podem ser encontradas nos recursos hídricos, bem como, normas para o reuso de águas residuais. Mas, como muitas substâncias novas acabam aparecendo, nem sempre essas normas estarão atualizadas. Dessa forma, há a necessidade constante de estudos que busquem encontrar maneiras eficazes de avaliar uma determinada amostra ambiental.

A ecotoxicologia é uma ciência que nos ajuda a obter essas respostas. Essa ciência estuda os efeitos de um ou mais agentes químicos sobre uma população ou comunidade de organismos e seus reflexos sobre o ecossistema, sendo uma ferramenta para monitoramento ambiental. As análises químicas de amostras ambientais estimam somente a concentração dos elementos ali presentes, não refletindo a real biodisponibilidade deles, para isso, existem os ensaios biológicos, que são a base da ecotoxicologia. Dessa forma, os bioensaios para avaliação de toxicidade complementam os dados químicos, pois fornecem resposta mais abrangentes das características da amostra, como efeitos sinergísticos e biodisponibilidade dos compostos ali presentes, além das reações dos organismos aos poluentes ambientais. 

Portanto, um dos pontos fundamentais para preservação e conservação dos recursos hídricos é o investimento em saneamento básico, desde a coleta até seu tratamento. Para isso, é necessário o investimento em ciência e tecnologia, bem como novos hábitos da população.

Coleta de amostras em uma ETE; B: bioensaio com Allium cepa; C: bioensaio com cultura de células animais


Esquema geral do tratamento de esgoto. Fonte: SABESP Disponível em: http://site.sabesp.com.br/site/interna/Default.aspx?secaoId=49> . Acesso em 30/10/2020.


**O texto acima é um artigo de opinião, e não representa a opinião de todos os membros do NewFor ou de seus órgãos financiadores.

Bio: Bióloga pela UNESP Rio Claro, mestre e doutoranda em Ciências Biológicas  com ênfase em Biologia Celular e Molecular pela mesma instituição. Possui experiência na área de mutagênese ambiental e ecotoxicologia, atuando com bioensaios, contaminantes ambientais, biomonitoramento e biorremediação. Seu projeto de doutorado busca avaliar a toxicidade de efluentes após a utilização de processos oxidativos avançados em Estações de Tratamentos de Esgoto por meio de ensaios biológicos (Processo FAPESP n°2016/22483-1). 


Referencias e sugestões de leitura:

ANA- Agência Nacional de Águas. Quantidade de água. 2018. Disponível em:; http://www3.ana.gov.br/portal/ANA/aguas-no-brasil/panorama-das-aguas/quantidade- da- agua>. 

UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization). 2015. Water for a sustainable world. In: WWDR (The United Nations World Development Report), 2015. Published in 2015 by the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, 7, place de Fontenoy, 75352 Paris 07 SP, France.

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