Saneamento no Brasil: universalização dos serviços ou acesso universal?

Só é possível falar em saúde onde há saneamento. A Constituição Federal de 1988 (CF/88), em seu artigo 196, define que a “a saúde é direito de todos e dever do Estado” sendo obrigatória a garantia do acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. Essa associação entre saúde e saneamento é tão direta e reconhecidamente na visão dos legisladores que, entre os princípios que norteiam o Sistema Único de Saúde (SUS), definidos por lei específica, está prevista a competência de participação, implementação de políticas públicas e execução de ações relacionadas aos serviços de saneamento básico – Lei Federal Nº 8.080/1990.  


As empresas de saneamento iniciaram-se no Brasil em meados de 1971, a partir da instituição, pelos militares, do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA) que vislumbrava como objetivo último a universalização dos sistemas de saneamento. Entretanto, o PLANASA pecou pela falta de planejamento e a ausência da percepção e assunção da relação entre saúde pública e  saneamento ambiental, gerando com isso reflexos nocivos que afetam até hoje a população e determinaram os rumos dos índices de atendimento para os serviços de água e esgoto, encontrados na atualidade (Jorge, 1992). E, apesar da evolução que a CF/88 trouxe em relação ao papel do Estado perante seu povo e os direitos que ela prevê como obrigatórios de serem respeitados e protegidos para o bem estar geral da população, a legislação brasileira que foi sendo criada a partir daí seguiu, e ainda segue, discurso ambíguo, que em vários casos destoa do que o Carta Magna determina, e que reflete uma visão tacanha do papel social que o saneamento representa. Como resultados obtidos, o mais problemático é o embotamento do desenvolvimento pleno do saneamento ambiental no Brasil, limitando o acesso universal desses serviços para todos os cidadãos e cidadãs brasileiras. Estes, então portadores de direitos irrevogáveis perante a lei maior, foram reduzidos a meros consumidores de serviços e produtos de utilidade pública. 


A partir disso, cria-se um ambiente onde passa a ser aceitável que um item estratégico para o país e de caráter essencial à vida humana, passe por um processo cujo resultado será tornar-se um commodity, acessível apenas a quem pode pagar. É o que está se vislumbrando para os próximos anos em relação a água – sendo a água o que mais sobressalta quando falamos de saúde e de saneamento, em verdade, indissociáveis. Então um elemento natural tão vital quanto o ar, passará a ser produto privado, associando a garantia de uso a quem possui residência, endereço, pode pagar, possui relações econômicas viáveis com o meio em que se encontra – o que destoa da condição real de boa parte da população brasileira. Facilita-se o acesso, “desde que”, como se esse “desde que” fosse uma escolha individual, e não fruto de condições perpetuadas por séculos e que se refletem na desigualdade que vemos neste país, desde sempre.
 

As empresas de saneamento de economia mista ainda mantêm um forte vínculo com o Estado e, por conta disso, carregam consigo a visão de que faz parte do seu papel institucional criar mecanismos que promovam o acesso da parcela mais pobre da população, através de tarifas sociais e programas voltados para grupos de alta vulnerabilidade social, por exemplo. Não que seja suficiente, pois ainda requer muitas melhorias. Porém, ainda é um braço do Estado. Estado este que, não obstante suas deficiências, ainda mantém operante suas metas essenciais e se obriga a cumpri-las perante a sociedade de forma mais incisiva que o setor privado. 


Entretanto, o Estado engloba a todos, e conforme veremos nas linhas seguintes, inclusive o setor mais abastado e privado, que se beneficia da imensa maior fatia dos recursos de investimento público no setor de saneamento. E então, a visão de que o setor privado não possui deveres sociais é contraditória, quando este usufrui plenamente de direitos, inclusive proporcionados pelo Estado “ineficiente” em fazer, mas eficaz em legislar e delegar, aparentemente. 


Enfim, a meta para o setor de saneamento deve ser não apenas da universalização dos serviços (chegar com redes de água e esgoto até a entrada das residências) mas, principalmente, o real acesso, para toda a população que, apesar dos recursos públicos até hoje investidos, apenas os privilegiados possuem esse direito contemplado, respeitado e atingido. E não é porque pagam por eles, na medida direta em que os recebem, pois na verdade, pagam menos pelo todo que vêm recebendo ao serem mais e melhor atendidos pelos investimentos no setor de saneamento, oriundos de recursos públicos financiados por toda a coletividade, também de forma desigual. Neste ponto, é necessário que seja chamada a atenção para a constatação de que os pesados recursos investidos pelo Estado em saneamento – e em outros serviços públicos - provêm essencialmente dos tributos de consumo em massa da parcela da população que não está entre os 20% mais ricos da população brasileira. Não vamos entrar aqui, por falta de espaço, nos tributos incidentes nos produtos de consumo, onde itens da cesta básica sofrem maior (na verdade sofrem real) tributação, do que itens de luxo (que nem sequer são tributados). Para uma leitura mais detalhada a respeito, recomenda-se veículos como o Site Monitor Mercantil, matéria publicada em aqui


Trazemos para reflexão informações obtidas com dados levantados e validados pelo Banco Mundial na Figura abaixo, onde são apresentadas evidências sobre a realidade não só no Brasil, mas no mundo: a de que os recursos investidos pelos governos em saneamento privilegiam, através de obras e acesso prioritários e robustos, aos mais ricos. 

Recursos mundiais em saneamento e os percentuais de subsídios captados. No gráfico, constata-se que 56% dos recursos públicos beneficiaram diretamente apenas os 20% da população mais rica. Para a parcela mais pobre chegaram apenas 6% desses recursos.  

 

 

 

A compreensão que buscamos alcançar aqui é de que, ao tratarmos o saneamento como um bem a ser expandido através do setor privado devido a falhas do Estado em cumprir com suas obrigações, não se pode desviar a atenção para as verdadeiras causas dessas falhas.  Não se trata de mera ineficiência técnica ou falta de recursos quando constatamos que 20% da população é plenamente atendida. O que chama a atenção aqui é que esse atendimento se dá através do aproveitamento de 56% do montante total dos recursos públicos, sendo essa parcela justamente a mais abastada em um país com tamanha desigualdade. Enquanto isso, dos 44% restantes, apenas 6% são utilizados para 20% da população mais pobre. Em números absolutos, para os dados do IBGE de 2018, significa dizer que 56% dos recursos públicos do país são dedicados a apenas 17,2 milhões, de um total de 207,7 milhões de brasileiros. 


A ampla abertura para a privatização da concessão dos serviços de saneamento, a partir do novo Marco Regulatório do Saneamento, sancionada pelo Governo Federal em julho de 2020, traz como dúvida se essa problemática de uso de recursos de forma desigual e com privilégios para uma parte da sociedade será superada, ou se não se trata  apenas de  mais um mecanismo que acentue a desigualdade no Brasil, a exemplo do que ocorreu no processo de privatização dos serviços de saúde e educação, no Brasil. Quais os dispositivos legais criados para solucionar essa diferenciação, e que irão assegurar o respeito às garantias constitucionais?


A Lei 11.445/07 (BRASIL, 2007), que antecedeu o novo marco regulatório, não trazia entraves para a entrada do capital privado nos serviços de saneamento. Caso isso ocorresse, não seria possível a existência de empresas do setor privado operando há anos em diversos municípios do Brasil. Por outro lado, ao que nos parece, as diretrizes de subsídio cruzado e outras diretivas legais, que visavam corrigir distorções no direcionamento dos recursos, não foram suficientes.


Espera-se que não ocorra mais uma vez o favorecimento do setor privado, a exemplo do que se verificou para os serviços de saúde, nos quais ocorreu a criação de benefícios fiscais e programas de financiamento para a expansão do setor privado ao mesmo tempo que a omissão do Estado tornou propício o ambiente para o sucateamento dos serviços públicos de saúde (Heller et al, 2018) – e é sempre bom lembrar, exatamente igual ao que aconteceu com a educação pública. Sucateamentos estes que, posteriormente, fundamentam a opinião pública (opinião esta que é elaborada de forma distorcida por estar alheia à realidade, das reais causas) de que os serviços públicos trazem junto uma pior qualidade. Quando o que se verificou em muitos casos é que os médicos que atendiam nos hospitais públicos, assim como os professores que na época do sucateamento da educação atuavam em escolas públicas de excelente qualidade de ensino, migraram todos para o setor privado, em busca de salários e condições mais dignas de trabalho. 


Saindo da realidade nacional, o que nos traz a experiência de diversos outros países que seguiram por este mesmo caminho privacionista? O reconhecimento da importância do papel dos serviços de saneamento como de caráter essencial para a população e, como tal, não sendo possível a sua delegação para empresas privadas, que visam tão somente ao lucro e não possuem foco na solução de problemas sociais e na distribuição equânime do que é público. Essa constatação vem gerando uma onda de reestatização, sobretudo na Europa. Existe até um Observatório Europeu de iniciativa transnacional, o “Water Remunicipalisation Tracker”, que monitora o movimento de desprivatização do saneamento no mundo. Os casos estudados por eles vão desde privatizações desfeitas, com o poder público comprando o controle que detinha "de volta", até a interrupção do contrato de concessão ou o resgate da gestão pública após o fim de um período de concessão. Entre 2000 e 2017 ocorreram 837 casos de remunicipalização de serviços de saneamento, abrangendo serviços para mais de 100 milhões de pessoas e incluindo capitais como Berlim, Paris, Budapeste, Buenos Aires e La Paz. 


Portanto, o que queremos chamar e clamar pela atenção de todos é de que não basta uma visão empresarial, com apelo à eficiência e a ampliação das redes de distribuição de água potável, passagem de redes de coleta de esgoto, soluções para o lixo, que compõem os serviços de saneamento. Não é suficiente caso o cidadão e a cidadã não possam pagar pelo produto final, por conta de outros problemas estruturais graves devidos a ineficiência do próprio Estado, especialmente na geração de riquezas para o país, seja pelo fomento ao desenvolvimento interno, que passa por uma melhor educação para todos, por exemplo; seja pela criação de empregos. Ou seja, a ideia de universalização de serviços pelos quais o acesso se torna inviável por conta da situação de pobreza da população a quem se diz que se quer atender transforma-se, quando trazida para a realidade, em um discurso vazio, uma iniciativa inócua, uma falácia a ser utilizada pelos que detêm o poder econômico nas mãos e podem pagar por algo que é um direito constitucional, em essência. Já comprovada pelos resultados obtidos nas áreas de saúde e educação.


É necessário que o pacto da nossa sociedade, traduzido no texto constitucional, seja amplamente respeitado. Não apenas por ser um tratado legal, mas principalmente porque busca a justiça real para todos. E não seria esta a essência de uma sociedade civilizada? A justiça igual para todos e que garanta a liberdade de se desenvolver e viver com dignidade - direito este de todo ser humano. Não se encontra na CF/88 definições que diferenciem os cidadãos e cidadãs pelo poder econômico que possuem. Mas cabe a todos nós reflexões sobre como transformar em realidade o que é justo. Seria, então, apenas um caso de ineficiência do Estado que a parcela mais rica tenha acesso a maior parte dos recursos, parcela esta que está no comando não só do próprio Estado através de grupos políticos, mas também no comando dos setores econômicos da sociedade? 


A desconstrução da ideia de que alguns direitos, como a vida com dignidade, são privilégios associados ao capital – a quem tem capital para pagar pela educação, pela saúde e, talvez, muito em breve, pela água, é algo a ser trabalhado internamente, por cada um de nós, pois é a visão que estrutura a nossa sociedade. Esse conceito criou o nosso principal paradigma, fortemente adotado no Brasil desde a chegada dos europeus, e precisam ser derrubados, pois as gerações que se sucederam e as que estão chegando não estão ainda em completa posse de seus direitos, por serem nascidas neste país, por terem direito aos bens que estas terras provêm tão abundantemente. 


A visão de que água com qualidade é um bem, conforme consta nos textos legais, que os efeitos dos serviços de coleta de esgoto e lixo são regionais ou locais, e os problemas ou ineficiências nesses serviços podem ser meramente associados à condição de pobreza da população e falta de recursos demonstra uma não aceitação da realidade de que as causas são públicas, mas também são de responsabilidade de cada um de nós, como indivíduo. E isso não significa que a solução está na privatização, mas na mudança dessas visões e desses paradigmas.


Ainda que a percepção desses prejuízos seja sentida de forma escalar nos extratos que compõem a nossa sociedade, onde quanto mais se detêm riqueza menor é essa percepção da real precariedade, os efeitos existem e acabam por afetar a todos, pois não possam ser reprimidos completamente na sociedade atual – são apenas jogados na sombra coletiva. 


Então fica aqui uma questão para as empresas de saneamento do setor privado: irão assegurar tão somente a prestação de serviços, com eficiência, aos que poderão pagar; ou veremos uma real universalização da exploração de um bem que pertence a todos e não apenas aos que possuem capital, universalizando de fato e de direito? Caso contrário, não é possível falar em avanços na universalização do saneamento através do marco regulatório, conceito este que no Brasil se tornará então associado a simplesmente a presença de estruturas físicas, mas com as torneiras fechadas para a população mais pobre e aberta apenas para quem pode pagar. 


Agradecimentos pela revisão do texto ao Eduardo Marinho, artista de rua.


**O texto acima é um artigo de opinião, e não representa a opinião de todos os membros do NewFor ou de seus órgãos financiadores.

Referências:
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 


BRASIL. Lei nº. 8080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.


BRASIL. Lei nº. 11.445, de 05 de janeiro de 2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; altera as Leis nos 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.036, de 11 de maio de 1990, 8.666, de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga a Lei no 6.528, de 11 de maio de 1978; e dá outras providências. 


HELLER, L. MENICUCCI, T. D’ALBUQUERQUE, R. BRITTO, AL. SARTI, F. ULTREMARE, F. Textos para debate, nº 11. Saneamento como política pública: um olhar a partir dos desafios do SUS. Centro de estudos estratégicos da Fiocruz. Disponível em: < https://cee.fiocruz.br/?q=Futuros-do-Brasil%20%E2%80%93%20Textos-para-debate >


Jorge, W. E. (1992). A Avaliação da Política Nacional de Saneamento Pós 64. Pós. Revista Do Programa De Pós-Graduação Em Arquitetura E Urbanismo Da FAUUSP, 1(2), 21-34. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.2317-2762.v1i2p21-34 >


Site Water remunicipalisation tracker. Disponível em < http://www.remunicipalisation.org/> 


Bio: Ana Lúcia Silva é engenheira química pela Faculdade Osvaldo Quirino; Mestrado em Engenheira Civil pela Escola Politécnica da USP; Doutorado em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Atua há 28 anos na área de saneamento e há 9 anos como professora convidada no programa de pós graduação da FSP/USP.



 

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