O Cerrado e seus desafios na restauração
Por Thaís Mazzafera Haddad
O Cerrado ocupa cerca de 2 milhões de km2 do Brasil, o equivalente a aproximadamente 20% do território nacional. Suas grandes proporções o colocam como o segundo maior domínio fitogeográfico do país, atrás apenas da Amazônia. A vegetação do Cerrado abrange campos, savanas e florestas. Os campos e savanas são as fitofisionomias predominantes e seu estrato herbáceo-arbustivo composto por gramíneas, ervas não graminóides, e pequenos arbustos concentra cerca de 70% de sua diversidade. As savanas do Cerrado são consideradas as mais ricas em espécies do mundo. Além disso, o Cerrado abastece oito das 12 regiões hidrográficas do país, e sua vegetação aberta e solos bem drenados são fundamentais para tal provisão. O fogo faz parte da evolução dos campos e savanas do Cerrado há mais de 4 milhões de anos, e sua vegetação adquiriu ao longo do tempo adaptações para sobreviver a ele. Dentre elas há o desenvolvimento de cascas espessas, para isolamento do tecido vivo das árvores, alta capacidade de rebrota, devido a presença de estruturas subterrâneas bem desenvolvidas e estímulo à floração pós fogo. Ademais, o fogo é um importante mantenedor das estruturas abertas de campos e savanas onde o solo e o clima também comportam florestas, pois limitam a densidade de árvores, impedindo o adensamento desses indivíduos e a formação de ambientes florestais.
Infelizmente, o Cerrado vem sendo ameaçado pela conversão, em muitos casos desordenada, de suas áreas em pastagem, agricultura e silvicultura. A demanda por commodities agrícolas fez com que quase metade do Cerrado já tenha sido perdido (46%) e para evitarmos a maior extinção de plantas endêmicas prevista desde a descoberta do Brasil, precisamos pensar em conservação e restauração de seus ecossistemas. Por muito tempo, desvalorizaram-se áreas naturais não florestais, quanto ao seu papel de conservação de biodiversidade e de provisão de serviços ecossistêmicos. Atualmente, por mais que haja reconhecimento do valor das savanas e campos, muitas dessas áreas ainda são erroneamente consideradas florestas degradadas e têm o plantio de árvores em alta densidade e a exclusão do fogo como prática de restauração. Tal plantio é comumente aplicado com sucesso em restauração de florestas. Entretanto, a indução da formação de um dossel florestal em áreas naturalmente abertas, elimina gradualmente as espécies típicas de Cerrado, pois estas são intolerantes à sombra e não sobrevivem sob copas fechadas. Sendo assim, anteriormente a qualquer medida de restauração, devem-se avaliar as espécies ali presentes e o histórico da área para conhecermos o tipo de vegetação que devemos restaurar e a melhor prática a ser utilizada.
O segundo passo para uma adequada escolha da técnica de restauração é a avaliação do potencial de regeneração da área. Recomenda-se pelo menos um ano de pousio antes de tomadas de decisões. Caso as estruturas subterrâneas não tenham sido intensamente danificadas, a regeneração natural pode ser considerada para restauração, desde que haja monitoramento da área para controle de adensamento de lenhosas e de ocupação por espécies invasoras. Muitas das espécies de Cerrado apresentam baixa viabilidade e taxa de germinação de suas sementes e seu potencial de dispersão também é baixo. Desta maneira, nem sempre podemos contar com a vegetação do entorno como fonte de propágulos para que impulsionemos o sucesso da restauração. Se detectado baixo potencial de regeneração natural da área, sua recuperação deve contar com a introdução ativa das espécies vegetais, principalmente as gramíneas e ervas não graminóides, mais sensíveis aos distúrbios antrópicos. A semeadura por espécies nativas, incluindo todas as formas de crescimento (gramíneas, ervas não graminóides, subarbusto, arbustos e árvores para savanas, e gramíneas e ervas não graminóides para campos) vem mostrando resultados promissores no planalto central, podendo ser utilizado para restaurações em larga escala. É importante, entretanto, que se considere a introdução de espécies com já conhecida taxa de germinação e sobrevivência para evitar desperdício de recursos, pois pouco sabemos da biologia das espécies a serem introduzidas. O transplante de gramíneas nativas e de topsoil de áreas conservadas para áreas em restauração também são possibilidades promissoras de restauração. Entretanto, ainda devem ser testados em larga escala e as práticas também dependem da presença de áreas fonte em bom estado de conservação. Ainda iminente, estudos envolvendo o plantio de mudas de gramíneas, como acontece com mudas florestais, também reacendem a esperança para futuras possibilidades de restabelecimento da vegetação das áreas abertas de Cerrado. Atualmente, poucas são as mudas de espécies típicas deste domínio em viveiros e sua disponibilidade concentra-se nas árvores e arbustos, sendo os subarbustos e herbáceas sub-representados ou ausentes.
A necessidade da manutenção de uma estrutura aberta para a restauração das savanas e campos do Cerrado traz um desafio adicional, que é a eliminação de gramíneas invasoras, que competem com as espécies nativas de Cerrado, impedindo seu estabelecimento em áreas em restauração. Neste contexto, o fogo pode ser utilizado como um aliado para o controle de gramíneas invasoras, e seu melhor uso se dá seguido de posteriores práticas de manejo como o revolvimento do solo para eliminação de possíveis rebrotas, ou sua retirada manual pós fogo. Além de controle de invasoras, o fogo deve ser visto como uma ferramenta em prol da restauração das savanas e campos do Cerrado. É importante que tenhamos em mente que nem todo fogo é ruim. E, por mais que ainda não haja uma prática pré-estabelecida para a reintrodução do fogo nos diferentes ambientes onde sua presença é natural, as pesquisas devem proceder de modo a reconhecê-lo como aliado da restauração. Assim, podemos avançar nas respostas a questionamentos sobre onde e como (época, frequência e intensidade) aplicá-lo para a restauração das savanas e campos do Cerrado.
Por fim, savanas e campos que tiveram suas terras convertidas para agropecuária e silvicultura podem demorar de 160 a 1.400 anos para atingirem a riqueza de áreas naturais ao se regenerarem naturalmente, e, mesmo assim, a composição de espécies ainda não se recuperaria. Desta maneira, aliado às grandes lacunas sobre como reintroduzir as espécies típicas de Cerrado e o fogo como ferramenta de restauração, fica o apelo pela urgência em se conservar o que ainda nos resta deste importantíssimo domínio fitogeográfico, para assim, garantirmos a manutenção de sua biodiversidade e provisão de seus serviços ecossistêmicos.
**O texto acima é um artigo de opinião, e não representa a opinião de todos os membros do NewFor ou de seus órgãos financiadores.
Bio: Thaís Mazzafera Haddad – Doutora em Ciências pela ESLAQ/USP, orientada pelo professor Dr. Ricardo Augusto Gorne Viani. Foi membro do Laboratório de Silvicultura e Pesquisas Florestais (LASPEF – UFSCar/CCA)
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