Os campos do Pampa resistirão à conversão?

Por Rosângela Gonçalves Rolim


Poucos sabem dizer qual era a vegetação original que cobria o Rio Grande do Sul (RS) antes da chegada dos portugueses. Muitos diriam que se tratavam de imensas florestas. E em parte isto está correto: grandes áreas foram desmatadas na metade norte do Estado, como contam algumas músicas gaúchas, como “Balseiros do Rio Uruguai”, de Cenair Maicá. Árvores estas derrubadas especialmente para a exportação de madeira. Mas tantas outras músicas falam dos campos e da “lida campeira”, como em “Costumes Missioneiros” de Noel Guarany. O “campo” é a vegetação que predomina na metade sul e noroeste do Rio Grande do Sul, muito associado à cultura do gaúcho. Diferente das florestas, onde as árvores são dominantes, nos campos predominam plantas de menor porte: as ervas, subarbustos e arbustos. Dentre as ervas destacam-se as gramíneas que pelo seu predomínio, quando vistas de longe, aparentam formar um imenso tapete homogêneo. Mas observando de perto, a biodiversidade pode impressionar. O recorde de espécies encontradas em um único metro quadrado é 56 [1]. Reconhecido pelo IBGE apenas em 2004, o Pampa ocorre exclusivamente no Estado do Rio Grande do Sul abrangendo 193.836 km2 [2], se estendendo pela Argentina e Uruguai (Figura 1). 

Figura 1: O bioma Pampa, no Rio Grande do Sul, faz parte da maior área contínua de campo das Américas. Fonte: Andrade et al. 2018.

O bioma Pampa apresenta hoje menos de 20% da sua vegetação original. A conservação do bioma não gerava grandes preocupações enquanto a principal atividade econômica nesta região do Estado era a criação de gado sob a vegetação nativa. Diferente do que está sendo observado na Floresta Amazônica, em que a floresta está sendo derrubada para implantação de pastagem, os campos do Pampa são pastagens naturais e utilizadas como tal desde o século XVII. Portanto, a pecuária manteve os campos até então podendo ser uma forma de uso sustentável da vegetação uma vez que o gado se alimenta da parte aérea das plantas, especialmente das gramíneas, que rebrotam em seguida. Este fato foi confirmado em estudos em que a retirada do gado de um campo promoveu rápido retorno da biodiversidade [3]. No entanto, a pecuária tem sido substituída especialmente pelo cultivo da soja e pelo plantio de árvores exóticas, o que implica na retirada da vegetação original. Dessa forma o bioma Pampa teve, apenas na última década, provavelmente sua mais acentuada perda, de mais de 1 milhão de hectares [4]. Esse rápido declínio coloca em risco de desaparecimento parte das mais de 2000 espécies campestres presentes no Pampa [5], sendo que 663 espécies são exclusivas do Estado [6]. Nas últimas décadas se intensificou o conhecimento sobre o Pampa, com inúmeros diagnósticos e levantamentos, além de trabalhos de divulgação do potencial dessa flora. Grande parte da riqueza, com potencial diverso [7, 8], é desconhecido e/ou ignorado uma vez que a maior parte da população atualmente vive em zonas urbanas, consumindo quase exclusivamente produtos exóticos, nos quais se resumem os alimentos e outros produtos comercializados. Ainda assim algumas espécies são utilizadas comercialmente, como a carqueja (Baccharis crispa) e a carqueja-branca (Baccharis articulata) que possuem uso medicinal, a petúnia (Petunia spp.), a verbena (Glandularia peruviana) e a azulzinha (Evolvulus sericeus), utilizadas como ornamentais.

Diante da redução de área do Pampa foram iniciados experimentos de restauração, especialmente na última década. Apesar destas pesquisas serem recentes, atualmente já se sabe que a vegetação campestre não retorna à condição original de forma espontânea após a conversão [9], seja com revolvimento do solo para plantios, aplicação de herbicidas, etc. Em parte isso ocorre porque o banco de sementes difere da vegetação estabelecida [10, 11], ou seja, muitas das espécies dominantes na vegetação campestre não formam banco de sementes e a conversão implica na retirada delas do local. Dentre as técnicas de restauração inicialmente testadas, a transposição de feno não foi eficaz na reintrodução de espécies em um estudo realizado [12]. Considerando estes resultados, esforços estão sendo realizados em mais estudos com transposição de feno, transposição de leivas (retirada de uma porção de solo contendo a vegetação nativa estabelecida para implantação no local que se deseja restaurar) e, também, germinação e desenvolvimento inicial de espécies campestres. Estes trabalhos estão em fase inicial, e alguns foram prejudicados por conta da pandemia, mas resultados já indicam algumas espécies com maior possibilidade de sucesso na germinação e estabelecimento, e também algumas mais tolerantes à seca.

As políticas públicas são imprescindíveis para a conservação do bioma Pampa, mas os incentivos governamentais atuais estão voltados a outros setores da economia. Os diversos estudos até então realizados demonstraram que a restauração da vegetação campestre do bioma Pampa exige grandes esforços e, consequentemente, custos elevados, demonstrando que é mais eficiente evitar a conversão de novas áreas diante da alta taxa de conversão que o bioma já sofreu.

Bioma Pampa visto a partir do topo do Cerro do Jarau – Quaraí/RS (2010).


Mais de 2000 espécies de plantas podem ser encontradas no Pampa, bioma exclusivo do Rio Grande do Sul.


Referências:
1. Menezes, L.S; Vogel Ely, C.; Lucas, D.B.; Silva, G.H.M; Boldrini, I.I.; Overbeck, G.E. Plant species richness record in Brazilian Pampa grasslands and implications. Brazilian Journal of Botany, v. 41, p. 817-823, 2018.
2. IBGE. Biomas e Sistema Costeiro-Marinho do Brasil. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/apps/biomas/>. Acesso em 19 nov. 2020.
3. Fedrigo, J.K.; Ataide, P.F.; Filho, J.A.; Oliveira, L.V.; Jaurena, M.; Laca, E.A.; Overbeck, G.E.; Nabinger, C. Temporary grazing exclusion promotes rapid recovery of species richness and productivity in a long-term overgrazed Campos grassland. Restoration Ecology, v. 26, p. 677-685, 2018.
4. Projeto Mapbiomas. Coleção 5.0 da Série Anual de Mapas de Cobertura e Uso de Solo do Brasil. Disponível em: <https://plataforma.mapbiomas.org/>. Acesso em: nov. 2020.
5. Boldrini, I.I.; Ferreira, P.; Andrade, B. O.; Schneider, A.A.; Setubal, R.B.; Trevisan, R.; Freitas, E.M. Bioma Pampa diversidade florística e fisionômica. Porto Alegre: Pallotti, 2010. v. 1. 64p.
6. Andrade, B.O.; Marchesi, E.; Burkart, S.; Setubal, R.B.; Lezama, F.; Perelman, S.; Schneider, A.A.; Trevisan, R.; Overbeck, G.E.; Boldrini, I.I. Vascular plant species richness and distribution in the Río de la Plata grasslands. Botanical Journal of the Linnean Society, v. 188, p. 250-256, 2018.
7. Kinupp, V. F. Plantas alimentícias não-convencionais da região metropolitana de Porto Alegre, RS. 590f. Tese, Fitotecnia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2008.
8. Heck, R.M.; Ribeiro, M.V.; Barbieri, R.L. Plantas medicinais do bioma Pampa no cuidado em saúde. Brasília: Embrapa, v. 1, 156 p. 2017.
9. Vieira, M.S.; Overbeck, G. E. Recuperação dos campos. In: Pillar, V.D., Lange, O. (Org.). Campos do Sul. 1ed. Porto Alegre: Rede Campos Sulinos, 2015, p. 151-152.
10. Vieira, M.S.; Bonilha, C.; Boldrini, I.I.; Overbeck, G.E. The seed bank of subtropical grasslands with contrasting land-use history in southern Brazil. Acta Botanica Brasilica, v. 29, p. 543-552, 2015.
11. Silva, G.H.M; Overbeck, G.E. Soil seed bank in a subtropical grassland under different grazing intensities. Acta Botanica Brasilica, v. 34, p. 360-370, 2020.
12. Thomas, P.A., Schüler, J., Boavista, L.R., Torchelsen, F.P., Overbeck, G.E., Müller, S.C., Controlling the invader Urochloa decumbens: Subsidies for ecological restoration in subtropical Campos grassland. Applied Vegetation Science, v. 22, p. 96-104, 2018.

Para saber mais (links pertinentes):



Bio: A autora é bióloga, trabalha com vegetação campestre há 10 anos. Atualmente desenvolve doutorado em Botânica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com o tema “restauração campestre do bioma Pampa”.

Contato: rosangelagrolim@yahoo.com.br

Site Institucional:
https://www.ufrgs.br/levcamp/
https://www.ufrgs.br/restaurasul/

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Por que não devo chamar a Mata Atlântica de bioma?

A importância da conservação e restauração de nascentes

Uma nova visão da floresta: o que a tecnologia vê que nós não somos capazes