Transamazônica, um caminho para o desenvolvimento sustentável?

 Uma análise de meios de vida a partir da agricultura familiar baseada em sistemas agroflorestais com cacau ou pecuária

 

Por Daniel Palma Perez Braga
 

É possível viver bem dedicando-se à produção de cacau em sistema agroflorestal e/ou à pecuária a partir da agricultura familiar na região da rodovia Transamazônica, situada na Amazônia Oriental, sudoeste do estado do Pará. Porém, ainda existem dificuldades relevantes, principalmente sob a perspectiva de sustentabilidade socioambiental. De maneira bastante simplificada, este foi um dos principais achados da minha tese de doutorado defendida em 2019, sob orientação do Prof. Edson Vidal (ESALQ/USP) e supervisão dos professores Flávio Gandara (Esalq/USP) e Benno Pokorny (University of Freiburg). Para esse estudo, foi preciso observar múltiplos aspectos, considerando fatores de contexto com ampla variação e diferentes impactos sob as trajetórias de meios de vida de cada unidade familiar. Além disso, a relevância desses resultados não pode ser desconectada do histórico local de desenvolvimento rural.

 

Desde a década de 1960, a (re)ocupação da Amazônia brasileira intensificou-se drasticamente, fomentada por inúmeras iniciativas do então regime militar. Políticas marcantes vigoraram a partir do Programa de Integração Nacional (PIN), em 1970 (BRASIL, 1970; DE SOUZA, 2014; SOUZA, 2020), inaugurado emblematicamente com a derrubada de uma centenária castanheira (Bertholletia excelsa Humn. & Bonpl.) no município de Altamira-PA, para dar início à construção da rodovia Transamazônica (BR 230). Uma das mais ambiciosas obras da humanidade, a rodovia visava interligar os oceanos Pacífico e Atlântico, atravessando o coração do maior continuum de floresta tropical do planeta.

 

Rodovia Transamazônica no início das obras (1970: (a) máquinas trabalhando Fonte: (Folha de São Paulo 2016); (b) abertura da floresta primária. Fonte: (Folha de São Paulo 2016); (c) ponte de madeira. Fonte: (Folha de São Paulo 2016).



Com a rodovia, projetos de colonização foram planejados a fim de atrair a mão-de-obra camponesa e investidores capitalizados (HECHT; NORGARD; POSSIO, 1988; KLEINPENNING, 1977; PIEKIELEK, 2010). Sob o lema “terra sem homens para homens sem terra” e “integrar para não entregar”, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) eram órgãos oficiais à frente da implementação e distribuição de terras. Um processo que marginalizou o direito de populações tradicionais e indígenas que habitavam a região (GARRETT; GIL; VALENTIM, 2014; LE TOURNEAU, 2015; SIMMONS, 2002).


Atualmente, a BR 230 ainda não foi concluída pelo governo e anualmente é reportada nos veículos de imprensa por sua intrafegabilidade durante o inverno amazônico (NETTO, 2018). A Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que foi instalada na Volta Grande do Rio Xingu e começou a operar em 2016, trouxe avanços de infraestrutura junto com uma segunda onda de aumento populacional e diversos impactos socioambientais e econômicos (MORAN, 2016). Dentre as diversas possibilidades de atividades agropecuárias, o cacau em sistemas agroflorestais e a pecuária extensiva foram inicialmente fomentados por ações governamentais e perduram até hoje como as principais fontes de renda rural (IPEA, 2010).

Sequência de imagens mostrando problemáticas da situação regional, onde ocorre exploração madeireira, mineração, barragem hidrelétrica, transporte em estradas precárias e via balsa, tráfego de carros com gado, moradia precária e conflitos fundiários, dentre outros. (Fonte: acervo pessoal do autor. Foto no canto inferior à direita, autoria de Roberto Porro).


O intenso processo de “pecuarização” contribuiu para moldar os atuais valores sociais e culturais, além de promover a especulação imobiliária (BOWMAN et al., 2012; MERTENS et al., 2002; VEIGA; TOURRAND; QUANZ, 1996). Apesar das diferentes escalas de abrangência, tanto a criação de gado como a cacauicultura consolidaram-se e continuam em expansão territorial, consequentemente, motivando a conversão do uso do solo nas regiões de fronteira agrícola da Transamazônica. A cacauicultura foi se estabelecendo em pequenas propriedades, nas últimas décadas, como uma alternativa de produção em solos mais férteis, contribuindo com a permanência de inúmeras famílias de agricultores no campo, como já demonstrava Oliveira (1981) e garantindo uma renda praticamente mensal.


Embora esse processo produtivo familiar seja uma realidade na região, pouco se sabe sobre o bem-estar dos agricultores, fato este que nos levou a questionar: qual o padrão de vida alcançável por esses agricultores em pequenas propriedades rurais? Com intuito de melhor compreender os meios de vida dos agricultores familiares na Amazônia paraense, minha tese de doutorado comparou famílias cuja principal estratégia se baseava na produção de cacau em sistemas agroflorestais, pecuária bovina ou ambas as atividades.


Propriedade de agricultores familiares produtores de cacau em sistema agroflorestal (ao fundo da casa), no município de Uruará-PA (foto: acervo pessoal).

 

Minha assistente de campo (Bianca Torres) e eu levantamos dados e informações junto a 95 agricultores e agricultoras em seis municípios ao longo da rodovia Transamazônica (BR 230) e São Félix do Xingu. Utilizamos um roteiro de entrevistas que foi desenvolvido junto à equipe de pesquisadores do Laboratório de Silvicultura Tropical (LASTROP/ESALQ/USP), com base na abordagem Sustainable Livelihoods (DFID, 1999). O extenso questionário, contendo mais de 180 perguntas, costumava demorar entre 2 a 4 horas para ser respondido pelos voluntários que disponibilizaram seu precioso tempo. Além deles, também contamos com o apoio de várias pessoas das comunidades e instituições locais que nos ajudaram a acessar as áreas em campo (vide agradecimentos). Esses parceiros indicavam os primeiros agricultores em determinadas localidades e estes, por sua vez, indicavam os próximos a serem entrevistados (métodos conhecidos como “primeira-oportunidade” e “bola-de-neve”).

 
Estatisticamente, evidenciamos que é possível alcançar boas condições de vida dentre os agricultores familiares e que os produtores de cacau em sistema agroflorestal podem ser tão bem-sucedidos quanto os pecuaristas. A chance de sucesso é um pouco maior quando as duas atividades são adotadas de modo complementar. No entanto, esse sucesso econômico está correlacionado com maiores danos aos recursos florestais devido à redução da cobertura florestal principalmente pela atividade pecuária. Também encontramos correlações significativas entre o nível de sucesso, o tamanho da terra e a tecnologia (equipamentos básicos para produção de cacau ou gado) adotada.

Sistema agroflorestal com cacau com mais de 35 anos, no município de Medicilândia-PA (foto: acervo pessoal).


Os dados quantitativos foram muito variáveis e não foi possível identificar diferenças entre os diferentes sistemas. No entanto, uma análise qualitativa ressaltando a importância da trajetória individual de cada família constatou que se pode alcançar bons resultados econômicos para o padrão de vida dos agricultores familiares – moradias adequadas e renda anual superior a R$ 65.000,00 –, mas com relevantes desafios para o desenvolvimento sustentável. Dentre esses desafios citamos o desmatamento de grandes áreas que nem sempre resultam em sucesso econômico, a tendência à especialização produtiva associada à redução da diversidade de espécies, a infraestrutura de serviços públicos com estradas precárias, saúde e educação deficientes, a falta de nichos de mercado, o baixo envolvimento em organizações sociais, a escassez de mão-de-obra, o alto custo de insumos e tecnologias básicas para produção agropecuária, dentre outros.


O conjunto das constatações advindas do estudo nos remetem a novos questionamentos, dos quais destacamos dois:

    1.    Seriam essas as estratégias de meios de vida mais adequadas para o desenvolvimento rural sustentável da Amazônia paraense?
    2.    Seria possível consolidar sistemas produtivos mais diversificados, valorizando outros produtos nativos da região?
     


Para que novos modelos de produção associados à conservação florestal sejam adotados em maior escala, faz-se necessário ampliar os esforços envolvendo instituições multilaterais que fomentem a produção e o beneficiamento de tais produtos, garantindo seu mercado, e que monitorem o cumprimento da legislação ambiental (Lei N⁰ 12.651/2012). Ademais, é fundamental reconhecer e valorizar os diversos modos de vida das populações locais, bem como seus saberes tradicionais que detêm amplo conhecimento sobre o uso dos recursos naturais e sobre o funcionamento das lógicas de produção e comercialização em seus territórios.

Daniel Palma Perez Braga é Engenheiro Florestal, Mestre e Doutor em Ciências com opção em Conservação de Ecossistemas, pelo Programa de Pós-Graduação em Recursos Florestais da Universidade de São Paulo (ESALQ/USP). Atuou abordando temas diversos como: Adequação Ambiental; Restauração Florestal; Serviços Ambientais; Ecologia de Paisagem; identificação botânica de espécies arbóreas nativas; Agricultura Familiar; Produtos Florestais Não-Madeireiros; Meios de Vida Sustentáveis; Desenvolvimento Rural e; Sistemas Agroflorestais. Desenvolveu atividades de pesquisa em colaboração internacional no Centro Agronómico Tropical de Investigación y Enseñanza, CATIE, Costa Rica; em Yale School of Forestry and Environmental Studies (F&ES), EUA; e na University of Freiburg, Alemanha. Atualmente é professor colaborador no Curso de Especialização de Ensino de Ciências da Natureza em Territórios Educacionais da Transamazônica e Xingu (UFPA Altamira), consultor de pesquisa para o World Agroforestry Centre - ICRAF e revisor da revista científica Agroforestry Systems. Reside em Anapu/PA e contribui com atividades rurais em pequena propriedade familiar.

AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço a todas as pessoas que se envolveram direta ou indiretamente com a pesquisa, às famílias de agricultores que me receberam com muita hospitalidade em seus lares. Às instituições que me deram apoio em atividades de campo e logística, bem como o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (IMAFLORA), a Solidaridad, o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Medicilândia (STTR), a Cooperativa de Produtos Orgânicos do Xingu (COOPOXIN), a Casa Familiar Rural Dorothy Stang (CFR de Anapu). Ao patrocínio da FEALQ, a bolsa de estudos concedida pela CAPES (demanda social) e pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD).

REFERÊNCIAS
BOWMAN, M. S. et al. Persistence of cattle ranching in the Brazilian Amazon: A spatial analysis of the rationale for beef production. Land Use Policy, v. 29, n. 3, p. 558–568, 2012.
BRASIL. Decreto Lei n 1.106 de 16 de junho de 1970: Cria o Programa de Integração Nacional, altera a legislação do impôsto de renda das pessoas jurídicas na parte referente a incentivos fiscais e dá outras providências.Brasil, 1970. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del1106.htm>
DE SOUZA, C. M. Ditadura , grandes projetos e colonização no cotidiano da Transamazônica. Revista Contemporânea, v. 1, n. 5, p. 1–19, 2014.
DFID. (1999). Sustainable Livelihoods Guidance Sheets Framework. In Department for International Development (Vol. 2, Issue 9). https://doi.org/10.1017/CBO9781107415324.004
GARRETT, R. D.; GIL, J. D. B.; VALENTIM, J. F. Technology transfer: challenges and opportunities for ICLF adoption in the Brazilian Legal Amazon. In: D. J. BUNGENSTAB et al. (Eds.). . Integrated crop-livestock-forestry systems: a brazilian experience for sustainable farming. Brasília: Embrapa, Forthcoming, 2014.
HECHT, S. B.; NORGARD, R.; POSSIO, G. The economics of cattle ranching in the eastern Amazon. Interciencia, v. 13, p. 233–240, 1988.
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: Agropecuária. Disponível em: <http://www.ipeadata.gov.br>. Acesso em: 29 nov. 2018.
KLEINPENNING, J. M. G. An evaluation of the Brazilian policy for the integration of the Amazon region (1964-1974). Tijdschrift voor Econ. en Soc. Geografie, v. 68, n. 5, p. 297–311, 1977.
LE TOURNEAU, F. The Sustainability Challenges of Indigenous territories in Brazil’s AmazoniaCurrent Opinion in Environmental Sustainability, Elsevier. [s.l: s.n.].
MERTENS, B. et al. Crossing spatial analyses and livestock economics to understand deforestation processes in the Brazilian Amazon: The case of São Félix do Xingú in South Pará. Agricultural Economics, v. 27, n. 3, p. 269–294, 2002.
MORAN, E. F. Roads and dams: infrastructure-driven transformations in the Brazilian Amazon. Ambiente & Sociedade, v. XIX, n. 2, p. 207–220, 2016.
NETTO, J. P. Transamazônica: faraônico atoleiro. UOL, p. 4, 22 fev. 2018.
OLIVEIRA, E. Pará: O retorno do cacau à sua origem. Cadernos d ed. [s.l.] CEPLAC, 1981.
PIEKIELEK, J. Cooperativism and Agroforestry in the Eastern Amazon: The Case of Tomé-Açu. Latin American Perspectives, v. 37, n. 175, p. 12–29, 2010.
SIMMONS, C. S. The Local Articulation of Policy Conflict: Land Use, Environment, and Amerindian Rights in Eastern Amazonia. Professional Geographer, v. 54, n. 2, p. 241–258, 2002.
SOUZA, M. DE. Transamazônica: Integrar Para Não Entregar. Nova Revista Amazônica, v. 8, n. 1, p. 133, 2020.
VEIGA, J. B. DA; TOURRAND, J.-F. T.; QUANZ, D. A pecuária na fronteira agrícola da Amazônia: o caso do município de Uruará, PA, na região da Transamazônica. Embrapa-CPATU, v. 87, 1996.
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