Arcabouço legal de proteção da vegetação de Mata Atlântica no Brasil e em São Paulo (parte I)

Por Felipe Rosafa Gavioli


A Mata Atlântica é reconhecidamente um dos principais hotspots de biodiversidade do planeta, e historicamente um dos mais ameaçados e devastados. 

Estimativas recentes indicam que as formações de vegetação nativa da Mata Atlântica brasileira recobrem cerca de 28% do seu território original, o que equivale a 32 milhões de hectares1. No estado de São Paulo, o Inventário Florestal de 2020 publicado pelo Instituto Florestal indica que a cobertura de Mata Atlântica paulista é de 5,4 milhões de hectares, o que representa 21,7% do território estadual e cerca de 32,6% da área originalmente ocupada por Mata Atlântica no estado2


Aproximadamente 70% dos fragmentos florestais de Mata Atlântica no Brasil estão alocados em propriedades privadas1. Parte destes fragmentos são protegidos pelos instrumentos da Lei Federal 12.651/2012 – Lei de Proteção da Vegetação Nativa (LPVN), e conformam Reserva Legal (RL) obrigatória das propriedades rurais ou estão em Áreas de Preservação Permanente (APPs). Outra parcela destes maciços florestais está localizada em áreas comuns não protegidas, isto é, fora de APPs ou de RL. Estimativas da ONG Imaflora indicam que na Mata Atlântica brasileira estes fragmentos localizados em áreas comuns não protegidas perfazem 24 milhões de hectares3. Estes maciços florestais têm proteção legal associada à Lei Federal 11.428/2006, regulamentada pelo Decreto Federal 6.660/2008; e cuja aplicação foi detalhada no estado de São Paulo pela Resolução SIMA 80, publicada em 16 de junho de 2020. 

Neste contexto, buscaremos na parte I deste texto apresentar um breve panorama dos dispositivos legais de proteção dos fragmentos de Mata Atlântica localizados em área comum não protegida de propriedades privadas, com foco no estado de São Paulo, e na parte II fazer uma reflexão acerca dos potenciais benefícios e desafios do mapeamento dos estágios sucessionais da vegetação nativa, enquanto base para a modelagem da aplicação da legislação vigente no território paulista.   

Breve histórico e panorama atual da legislação de proteção da Mata Atlântica no Brasil e em SP

A primeira menção legal explícita à proteção da vegetação de Mata Atlântica aparece na Constituição Federal de 1988, que considerou no §4º do artigo 225 a Mata Atlântica como patrimônio nacional. 

Em 1993 é publicado o Decreto Federal 750, que estabeleceu proteção diferenciada para a vegetação de Mata Atlântica, considerando o estágio de regeneração do fragmento florestal, a localização do fragmento e a finalidade da supressão. O Decreto 750 proibia o corte de vegetação primária ou secundária nos estágios médio e avançado de regeneração, com exceções para obras de utilidade pública ou interesse social; permitia o corte de vegetação nativa secundária em estágio inicial de regeneração, independente da finalidade, e desde que autorizado pelo órgão competente; e apresentava um regramento especial para a supressão de vegetação em estágio médio ou avançado para fins de parcelamento do solo ou edificação em áreas urbanas.

Os estágios de regeneração da vegetação florestal de Mata Atlântica foram definidos para o estado de São Paulo em 1994, pela Resolução Conjunta SMA/IBAMA 01/1994. Tal dispositivo busca enquadrar, de modo simplificado, o processo de sucessão ecológica que ocorre em um fragmento de floresta ombrófila, estacional decidual ou semi-decidual, em estágios de vegetação secundária – pioneiro, inicial, médio e avançado –, que seriam as florestas regenerantes após algum processo de perturbação; e vegetação primária, que seriam as florestas maduras e não perturbadas por fatores antrópicos. A Resolução SMA/IBAMA 01/1994 parte do princípio de que quanto mais avançado o estágio de regeneração, mais complexo o fragmento em termos de estrutura, função e diversidade, e portanto maior a qualidade ambiental associada àquele maciço florestal.

Ainda em 1994 foi publicada no estado de São Paulo a Resolução Conjunta SMA/IBAMA 02/1994, detalhando as possibilidades de supressão de vegetação nativa em estágio inicial de regeneração para fins de parcelamento do solo. 

Depois, em 2006 é publicada a Lei Federal 11.428/2006, regulamentada pelo Decreto 6.660/2008. A chamada “Lei da Mata Atlântica” garante proteção diferenciada para os fragmentos florestais localizados em área comum não protegida a depender da localização do imóvel (perímetro rural ou urbano), e a depender do estágio de regeneração do fragmento florestal – se inicial, médio ou avançado de regeneração. 

Nos perímetros rurais, que são definidos pelo poder público municipal através do Plano Diretor por exemplo, os artigos 14, 20 e 21 da Lei 11.428/06 indicam que os fragmentos de vegetação nativa primária, ou vegetação nativa secundária no estágio avançado de regeneração somente podem ser suprimidos para as obras de utilidade pública, definidas na própria Lei 11.428/2006, no seu artigo 3º. Tais obras incluem, basicamente, atividades de segurança nacional ou sanitária e obras de infraestrutura de serviços públicos de transporte, energia ou saneamento. 

Para os fragmentos de vegetação nativa secundária em estágio médio de regeneração localizados em perímetro rural, a supressão regular pode ocorrer para as finalidades de utilidade pública e interesse social, conforme artigo 23 da lei. Aqui, o interesse social também é definido no artigo 3º da Lei da Mata Atlântica, e envolve: atividades de proteção da própria vegetação nativa como ações de prevenção e controle de incêndios, e atividades de manejo agroflorestal praticadas nas propriedades de agricultura familiar. No caso dos fragmentos de vegetação nativa secundária em estágio inicial de regeneração, a supressão regular em perímetro rural pode ocorrer para qualquer finalidade, conforme artigo 25 da Lei 11.428/2006


Figura 1. Fragmentos florestais em estágio médio de regeneração, região de Jarinu, SP. Fonte: Felipe Rosafa Gavioli

Nos perímetros urbanos, também definidos pelos municípios, aplicam-se os artigos 30 e 31 da Lei 11.428/2006, detalhados para o estado de São Paulo através de distintas Resoluções: primeiro pela Resolução SMA 14/2008, substituída pela SMA 31/2009, depois pela SMA 72/2017, e que foi recentemente revogada pela Resolução SIMA 80/2020. 

Este dispositivo legal indica que há possibilidade de suprimir, regularmente, vegetação nativa secundária em qualquer dos estágios de regeneração (inicial, médio ou avançado) para qualquer finalidade, desde que mantido 20% da propriedade com vegetação nativa, e um percentual remanescente do fragmento florestal incidente no imóvel, que é de 30% para os fragmentos em estágio inicial, 50% dos fragmentos em estágio médio e 70% dos fragmentos em estágio avançado. Nos imóveis que passaram a integrar o perímetro urbano após a publicação da Lei 11.428/2006, a Resolução SIMA 80/2020 veda a supressão de vegetação nativa secundária em estágio avançado de regeneração.

O artigo 17 da Lei da Mata Atlântica estabeleceu em 2006 a vinculação entre corte regular de vegetação nativa primária ou secundária nos estágios médio  e avançado de regeneração, e o compromisso da compensação ambiental, mediante destinação para preservação de área equivalente à desmatada, com as mesmas características ecológicas e na mesma bacia hidrográfica; sendo que na impossibilidade de compensação via destinação de área florestal, a Lei 11.428/2006 admite a restauração ecológica em área equivalente à área desmatada. 

No estado de São Paulo, a Resolução SMA 07/2017 detalhou o arranjo de compensação ambiental no estado, através do estabelecimento de classes de prioridade para restauração da vegetação nativa, e fatores de compensação ambiental distintos para cada classe e para cada estágio de regeneração suprimido. 

Assim, os 645 municípios paulistas foram classificados em áreas de baixa, média, alta ou muito alta prioridade para restauração da vegetação nativa. Em cada classe definida, há um fator de compensação ambiental associado ao estágio de regeneração do fragmento florestal suprimido, que varia de 1,25 vezes a área suprimida (compensação por supressão de vegetação nativa secundária em estágio inicial de regeneração e em classe de baixa prioridade) a 6 vezes a área suprimida (compensação por supressão de vegetação nativa secundária em estágio avançado de regeneração e em classe de muito alta prioridade). 


Figura 2. Mapa de áreas prioritárias para restauração da vegetação nativa de acordo com a resolução SMA 07/2017.

Desta maneira, a legislação paulista inova em relação a legislação federal ao incluir a necessidade de compensação ambiental pela supressão de vegetação nativa em estágio inicial de regeneração (ausente no artigo 17 da Lei 11.428/06) e ao atribuir pesos diferenciados para compensação ambiental em função da localização da supressão e da qualidade ambiental do maciço suprimido. Também é importante notar que a partir da Resolução SMA 07/2017, o fator mínimo da compensação ambiental exigida é 1,25 vezes a área suprimida, o que projeta uma perspectiva de incremento de cobertura florestal a ser preservada/restaurada, em relação ao montante autorizado para supressão regular. 

Verifica-se desta breve exposição que a legislação vigente de proteção dos remanescentes florestais de Mata Atlântica no Brasil e em São Paulo atribui proteção diferenciada para os maciços florestais localizados em área comum não protegida, a depender do estágio de regeneração e da localização (se em perímetro rural ou urbano); sendo que os fragmentos em áreas urbanas estão mais susceptíveis à supressão regular do que os fragmentos localizados em áreas rurais. No estado de São Paulo, a compensação ambiental devida em função de uma supressão autorizada também é fortemente vinculada ao estágio de regeneração do fragmento suprimido e ao local onde ocorreu tal corte. 

Neste cenário, conhecer a distribuição geográfica dos fragmentos florestais, associado à classificação destes fragmentos segundo o estágio de regeneração conforme definido na Resolução Conjunta SMA/IBAMA 01/1994, pode abrir perspectivas interessantes de modelagem da aplicação deste arcabouço legal, assunto que será discutido na parte II deste texto. 

  

Felipe Rosafa Gavioli é Engenheiro Agrônomo, e atualmente doutorando no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Uso de Recursos Renováveis - UFSCar Sorocaba. É engenheiro da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) - Agência Ambiental de Jundiaí desde 2011.


Referências:

1. REZENDE, C. L.; SCARANO, F. R.; ASSAD, E. D.; JOLY, C. A.; METZGER, J. P.; STRASSBURG, B. B. N.; TABARELLI, M.; FONSECA, G. A.; MITTERMEIER, R. A. From hotspot do hopespot: An opportunity for the Brazilian Atlantic Forest. Perspectives in Ecology and Conservation, v.16, p.208-214. 2018. Doi: https://doi.org/10.1016/j.pecon.2018.10.002

2. INSTITUTO FLORESTAL. Inventário Florestal do Estado de São Paulo 2020: mapeamento da cobertura vegetal nativa. São Paulo: Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, 2020. 40p. Disponível em: www.iflorestal.sp.gov.br  

3. GUIDOTTI, V.; FREITAS, F.L.M.; SPAROVEK, G.; PINTO, L.F.G.; CARVALHO, C.H.T.; CERIGNONI, F. Números detalhados do Novo Código Florestal e suas implicações para os PRAs. Sustentabilidade em Debate, n. 05.,p.10, IMAFLORA: Piracicaba, 2017. Disponível em:<http://www.imaflora.org>. Acesso em: maio de 2019.   





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