Por que não Mata Atlântica 4.0?

 Por Pedro Medrado Krainovic*


O Brasil é um dos países de maior biodiversidade do planeta, mas enfrenta os desafios de ter que lidar com isso no contexto das mudanças climáticas e das pressões sociais e políticas relacionadas à coexistência homem-natureza. A Mata Atlântica brasileira reúne o desafio da restauração florestal – agenda de destaque na década para mitigação das mudanças climáticas – com o potencial socioecológico-econômico inestimável da nossa megabiodiversidade.  Muito se fala em bioeconomia e nos melhores arranjos ecológico-econômicos para os biomas brasileiros, principalmente para a Amazônia.


Por que não Mata Atlântica 4.0? 

No principal eixo econômico do país, onde há a concentração de indústrias, universidades e institutos de pesquisa, a necessidade de desenvolvimento técnico e científico de base ainda parece ser um entrave nesse campo, já que muitas perguntas práticas carecem de respostas emergenciais e de pesquisas de longo prazo ao mesmo tempo em que vivenciamos uma “erosão científica”, com investimento em ciência e tecnologia cada vez mais enxuto. A viabilização financeira da restauração esbarra ainda na falta de conhecimento sobre as diversas espécies nativas e o uso comercial dos produtos que delas podem ser extraídos (Brancalion et al., 2017). Diferentemente de sistemas agrícolas, que se concentram no uso de poucas espécies que foram domesticadas ao longo de milhares de anos ou que passaram por programas modernos de melhoramento genético para potencializar seu cultivo e uso, as inúmeras espécies arbóreas nativas presentes em florestas restauradas são ainda materiais selvagens (Brancalion et al., 2019), que demandam estudos sobre seu uso em diferentes cadeias produtivas, como a produção de fármacos (ou materiais com propriedades farmacológicas), cosméticos e alimentos (Krainovic et al., 2020, 2018). 


Tá bem, o que fazer?

A Bioeconomia surge como uma resposta promissora à demanda atual, baseada no uso racional da biodiversidade, e é cada vez mais considerada uma estratégia política e econômica para um desenvolvimento global mais sustentável. A biotecnologia de produtos florestais não madeireiros (PFNM) surge como a alternativa dentro da proposta de desenvolvimento bioeconômico que favorecerá a relação custo-efetividade-atratividade de projetos de restauração florestal, impulsionando a conservação, o reflorestamento e a geração de renda (Brancalion et al., 2012) ao mesmo tempo em que cumpre as metas dos acordos globais para mitigação das mudanças climáticas . Do ponto de vista ecológico, uma das notícias boas é que as florestas secundárias que estão se restabelecendo mostram uma taxa líquida de absorção de carbono 11 vezes superior do que florestas antigas (Poorter et al., 2016), provendo simultaneamente esse serviço ecossistêmico e a possibilidade de  revelação/ aproveitamento dos potenciais biotecnológicos. 

Figura 01. Produtos florestais não madeireiros (PFNM)


Quais os principais entraves? 

Para a bioeconomia discutida na teoria acontecer – aquela com maior valor agregado e aproveitamento dos potenciais biotecnológicos com respeito à natureza – é necessária uma integração de saberes reunidos em um programa inter e transdisciplinar, que precisa transpassar, por exemplo, entre os saberes das ciências agrárias, ciências econômicas, química de produtos naturais, sociologia, entre outros campos transversalizados por alta tecnologia, inovação e incentivos políticos em suas diferentes esferas. Se fazem necessários incentivos para pesquisas aplicadas e às parcerias público-privadas, traduzidos em vontade política, já que visões e atitudes inovadoras trazem consigo riscos que, por vezes, se opõem à lógica dos investidores. Em síntese, se destacam dois pontos principais: 1) a falta de regulamentação específica para permitir o acesso de pesquisadores e empresas à biodiversidade para fins de inovação científica e tecnológica; e 2) a ausência de um programa governamental de apoio à pesquisa de longo prazo e inovação, leia-se, um programa com recursos suficientes para estimular a ciência brasileira, com destaque para a interação universidade-indústria na área de desenvolvimento. E aqui, é importante salientar que enquanto formos dependentes de tecnologias estrangeiras – não por falta de potencial brasileiro – não seremos atores principais do nosso desenvolvimento sustentável.  


O que avançamos? 

O Protocolo de Nagoya, produto da COP-10 da Convenção sobre Diversidade Biológica no Japão em 2010, estabelece a repartição dos benefícios dos recursos genéticos proporcionados pela biodiversidade dos países (“O que é o Protocolo de Nagóia,” 2014; “Tendência dos insumos naturais para produção de medicamentos - Blog | Talk SCIENCE,” 2021.). O protocolo é incisivo ao dar proteção aos países detentores da biodiversidade. Ou seja, com uma legislação alinhada a esse protocolo, pesquisadores esperam obter condições para realizar estudos que colaborem com os nossos biomas e proporcionem benefícios à humanidade. Como exemplos de casos de sucesso, não poderia deixar de falar das indústrias de fármacos e cosméticos, duas potências econômicas que representam setores que apostam em inovação a partir de produtos/ingredientes da biodiversidade que, mesmo com tamanhos desafios, conseguiram e conseguem sucesso mercadológico.


Será que conseguimos avançar mais? 

A ciência brasileira sempre forneceu, com muita qualidade, sua contribuição. A contribuição dos cientistas brasileiros foi decisiva para o desenvolvimento de tecnologia de ponta para retirar petróleo em águas profundas, para transformar e multiplicar a produção agrícola com o emprego de técnicas modernas e para o desenvolvimento de alta tecnologia na área espacial e de telecomunicações (Calixto, 2019, 2003). Mais recentemente, pesquisadores brasileiros destacaram-se internacionalmente na biologia molecular na área de sequenciamento genético e no próprio combate à COVID-19. Ao que tudo indica, parece que temos condições de desenvolver com sucesso um programa voltado para avanço da bioeconomia a partir da nossa biodiversidade, empregando tecnologia, produzindo produtos com alto valor agregado e com a qualidade genuinamente nacional. Um programa dessa natureza tornaria o país menos dependente do mercado internacional em uma área estratégica e tiraria o país do “potencial” para o protagonismo. Diante das inúmeras perguntas que temos nas mãos e que podem se desdobrar a partir dessas reflexões, uma resposta está certa: com todas as oportunidades que a bioeconomia oferece ao mercado brasileiro, a oportunidade de colocar o Brasil em uma posição de destaque na economia global está à nossa frente. Em última análise, o desafio maior é, sem dúvida, como transformar um imenso patrimônio genético natural em riquezas, criando indústrias de base ecológica-tecnológica e gerando empregos qualificados (Calixto, 2003). O projeto NewFor, projeto do Laboratório de Silvicultura Tropical (LASTROP/ USP) vinculado às agências de fomento à pesquisa de São Paulo e da Holanda  (FAPESP e NWO), juntamente com a World Resources Institute (WRI) e a The Nature Conservancy (TNC), apoia projetos para descoberta e desenvolvimento dos potenciais biotecnológicos da restauração florestal e busca novos parceiros para desempenhar ações em benefício da sociedade e da natureza.


*Pedro Medrado Krainovic é um engenheiro florestal pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Mestre e doutor em Ciências de Florestas Tropicais pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Pedro dedicou os últimos 12 anos ao trabalho com produtos florestais não madeireiros na Amazônia brasileira, juntando experiências acadêmicas e do setor corporativo. Com a conclusão de sua dissertação de mestrado com distinção em 2011, foi bolsista de desenvolvimento técnico industrial ao trabalhar com recuperação de áreas degradadas na Amazônia por meio da implantação de espécies florestais de potencial econômico. Seu doutorado foi concluído em 2017, agregando experiências interdisciplinares sobre a produção de óleos essenciais na Amazônia Central. Na Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH - coordenou as atividades de inovação na cadeia de fornecimento de matéria-prima (produtos não madeireiros da floresta amazônica) para a indústria cosmética. Hoje Pedro é pesquisador de pós-doutorado da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/ USP), no Laboratório de Silvicultura Tropical – LASTROP, onde conduz pesquisas sobre potenciais biotecnológicos da Restauração Florestal. Pedro tem trabalhado como revisor dos periódicos renomados de sua área e é membro da força-tarefa para produtos florestais não-madeireiros da União Internacional de Organizações de Pesquisa Florestal (IUFRO).

E-mail para contato: pedrokrainovic@hotmail.com


Referências:

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Para saber mais:

[https://science.talknmb.com.br/tendencia-insumos-naturais-medicamentos/

[https://www.oeco.org.br/dicionario-ambiental/28740-o-que-e-o-protocolo-de-nagoia/]



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