Emergência climática e humanidade: que caminho escolheremos?

Por Raíza Salomão Precinoto*


O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) reúne cientistas da Organização das Nações Unidas (ONU) responsáveis por trazer à sociedade um posicionamento e consenso científico da ONU sobre o clima. Recentemente, evidências mais robustas sobre a influência do ser humano no clima foram publicadas pelo Painel. O último relatório (Sixth Assessment Report – AR6), do chamado “Grupo de Trabalho 1” (Working Group I – WG1), sistematizou o conhecimento científico atualizado de base física sobre as mudanças climáticas, analisando o presente, o passado e o que podemos esperar para o futuro. Há mais de 14 mil referências bibliográficas somente nessa primeira parte do relatório, sem contar os mais de 70 mil comentários de revisão de especialistas e governos, que devem ser respondidos um a um pelos cientistas do Painel.


Qual a maior contribuição deste relatório?

A partir de agora, de acordo com o linguajar de certeza do IPCC, está “estabelecido” ou é “inequívoco” que as mudanças climáticas constatadas a partir da época da Revolução Industrial foram causadas pela humanidade. No relatório anterior, em 2013/2014, já se afirmava que existia uma influência do sistema humano sobre o clima. Ao longo dos últimos 30 anos de publicações de relatórios do IPCC, muito conhecimento foi consolidado. Basicamente, em poucas palavras, atualmente a Ciência avançou muito em termos de atribuição de causa de fenômenos climáticos.


Que alterações já podemos observar no presente?

Tendo em vista o fato de que as mudanças climáticas já iniciaram no passado, conforme mencionado anteriormente, podemos observar no nosso dia-a-dia cada vez mais os efeitos da alteração do sistema climático. Praticamente em todos os pontos da Terra observa-se um aquecimento, ou seja, ao longo do tempo, a temperatura média vem aumentando, e esse processo vem ocorrendo de forma acelerada. É o que se chama de “aquecimento sem precedentes”, já que a influência humana no sistema climático reverteu uma tendência de longo prazo de resfriamento que deveria ocorrer. Somente a variabilidade climática natural não explica o aumento de temperatura no globo terrestre, mas ao incluir o componente humano, em especial o incremento da emissão de gás carbônico pela queima de combustíveis fósseis a partir da Revolução Industrial, é possível atribuir uma relação causal.

Outro fenômeno que observamos nos dias atuais é o aumento de extremos climáticos, por exemplo: a ocorrência de eventos de chuvas intensas, enchentes, secas, ondas de calor, incêndios, e ciclones tropicais. Estes eventos têm se tornado cada vez mais intensos e mais frequentes.


O que está por vir?

Em relação ao futuro, existem os chamados “cenários climáticos” ou, popularmente conhecidos apenas como “projeções do IPCC”. O novo relatório trouxe um novo conjunto de cenários, baseados no conceito de “Caminhos Socioeconômicos Compartilhados” (Shared Socio-economic Pathways - SSP), que consistem em cinco alternativas diferentes de desenvolvimento socioeconômico. Basicamente, em cada cenário, os governos e empresas optariam por diferentes formas de produção energética, controle de poluição e de mudanças do uso da terra, em especial o desmatamento, que provocariam diferentes graus de emissão de gases de efeito estufa (GEE). 

Os cenários climáticos, nas publicações anteriores, eram focados no conceito de “Caminhos Representativos de Concentração” (Representative Concentrations Pathways – os antigos RCPs). O número utilizado no nome de cada cenário representa o balanço radiativo ou o calor que seria atingido no planeta ao longo do século XXI, que é maior conforme aumentam as emissões de GEE. Até o quinto relatório, tínhamos, basicamente, quatro cenários: o otimista, de baixas emissões (RCP 2.6), cenários de emissões intermediárias (RCP 4.5 e RCP 6.0) e o cenário pessimista, de altas emissões (RCP 8.5). 

O último relatório, elaborado, após o Acordo de Paris de 2015, trouxe a perspectiva dos cinco principais  cenários de sustentabilidade ou sequestro de carbono, isto é, casos para os quais o saldo líquido até o ano 2100 consistiria em emissões negativas, como o cenário SSP1-1.9, que considera que as emissões globais diminuiriam até meados do século, até o ponto de zerarem e se tornarem negativas, e o SSP1-2.6 que é semelhante, mas o ponto zero de emissões ocorreria posteriormente. Isso pode ser visualizado na Figura 1, que exibe as curvas de cada cenário atualizado ao longo do tempo de acordo com a quantidade de GEE emitidos. 

Figura 1. Caminhos socioeconômicos compartilhados (SSP). Fonte: WGI-AR6.


Além desses cenários otimistas, o novo relatório apresenta também um cenário intermediário ou “no meio do caminho” , e cenários de maiores emissões, como o de “rivalidade regional” e o cenário de “desenvolvimento baseado em combustíveis fósseis” . Todos são as principais representações de como a humanidade buscará (ou não) o controle da emergência climática. Esses cenários seguem uma lógica semelhante aos antigos, mas têm algumas diferenças, devido à consideração de outras possibilidades de decisões socioeconômicas, gerando cenários adicionais. A Figura 2 demonstra o cruzamento dos cenários anteriores com os atuais.


Figura 2. Cinco Caminhos Socioeconômicos Compartilhados (SSPs), seu valor indicativo de calor/forçante radiativa (eixo à esquerda) e cenários anteriores (RCPs). Fonte: WGI-AR6.


A temperatura global da superfície terrestre aumentará em todos os cenários de emissões até, pelo menos, metade do século. O aquecimento de 1,5ºC até 2ºC será alcançado nas próximas décadas, a menos que ocorram reduções significativas de emissão de GEE. Podemos trilhar um caminho de alta mitigação, de forma a migrar eficientemente de fontes de energias não-renováveis, como os combustíveis fósseis – a maior fonte emissora de gases de efeito estufa em escala global, conforme mostra a Figura 3 – para fontes de energia que emitam menos GEE. Em contrapartida, se as nações continuarem buscando um modelo de desenvolvimento econômico baseado no consumo de combustíveis fósseis, as emissões aumentarão e, consequentemente, a velocidade dos impactos das mudanças climáticas.

 

Figura 3. Origem das emissões de dióxido de carbono ao longo do tempo. No eixo Y, a porção positiva mostra que os combustíveis fósseis e as mudanças de uso da terra são os principais emissores de gás carbônico, enquanto os valores abaixo de zero exibem os sequestradores de carbono. Fonte: Friedlingstein et al., 2020; Global Carbon Budget, 2020.


Podemos mencionar um exemplo de preocupação para o Brasil, que é o sistema natural de monções que ocorre na América do Sul, provocando as chamadas “chuvas de verão” na região centro-oeste e abastecendo os reservatórios de água do Cerrado. Esse regime natural poderá ser alterado devido a mudanças no regime hidrológico, havendo a possibilidade de diminuição da quantidade de chuvas na região e consequente possibilidade de crise hídrica para todas as bacias hidrográficas dependentes dessa forma de entrada em seu sistema. Similarmente, ocorrendo a diminuição de chuvas na região amazônica, o sistema de “rios voadores”, que bombeia água emitida pela Amazônia para a atmosfera da região norte em direção ao sul e sudeste, poderá ser prejudicado, gerando também crises hídricas nas áreas mais populosas e com maior PIB do Brasil.

 

Considerações finais

As mudanças climáticas já estão em vigor, seus efeitos já são sentidos e podem ser piorados numa velocidade maior ou menor, a depender das decisões socioeconômicas da humanidade. É de elevada importância migrarmos para fontes de energias mais limpas, assim como, em especial no caso do Brasil, é importante controlarmos o desmatamento. Além disso, ações que promovam o sequestro de carbono, como a restauração florestal, cumprem um papel importante para a mitigação de efeitos das mudanças climáticas.

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Raíza Salomão PrecinotoEngenheira Florestal (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ), Mestre em Ecologia (Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) e Doutoranda em Recursos Florestais (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/ Universidade de São Paulo - Esalq/USP) no Laboratório de Hidrologia Florestal (LHF). Desde 2015, Raíza trabalha com Sistemas de Informações Geográficas (SIG) e análises espaciais, em especial, relacionadas ao desmatamento e à regeneração natural da cobertura florestal. Atualmente, em seu doutorado, Raíza se dedica à análise da relação de mudanças no uso e cobertura da terra e efeitos sobre processos hidrológicos na Amazônia, analisando tanto o histórico quanto as projeções futuras.


Referências e recomendações de leitura

Bustamante, M. O que precisamos aprender com o relatório do IPCC (2021) sobre mudanças climáticas? Palestra disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=b22AEEWU0G4 >. Acesso em: 15 set. 2021

Friedlingstein, P. 2020. Global Carbon Budget 2020. Earth Syst. Sci. Data, 12, 3269–3340, 2020. https://doi.org/10.5194/essd-12-3269-2020. 

Global Carbon Budget, 2020. Disponível em: < https://www.globalcarbonproject.org/carbonbudget/>

IPCC, 2021: Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Masson-Delmotte, V., P. Zhai, A. Pirani, S.L. Connors, C. Péan, S. Berger, N. Caud, Y. Chen, L. Goldfarb, M.I. Gomis, M. Huang, K. Leitzell, E. Lonnoy, J.B.R. Matthews, T.K. Maycock, T. Waterfield, O. Yelekçi, R. Yu, and B. Zhou (eds.)]. Cambridge University Press. In Press.


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